sábado, 15 de outubro de 2011

Em breve vai ser impossível fazer humor no Brasil



Matéria de ZERO HORA
ENTRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O MAU GOSTO

O humor tem limites?

Manifestações de humoristas que beiram a grosseria e quadros polêmicos em programas de TV trazem à tona antigo debate: é possível dizer onde termina o direito de rir e começa o direito de não ser alvo de riso?
Foram os romanos – povo orgulhoso de sua própria noção de humor refinado – que tornaram famoso o mote “Ridendo castigat mores”, ou “Com o riso, castigam-se os costumes”. Mas o que acontece quando aqueles de quem se ri sentem-se atingidos por considerar incômodo o costume do riso de castigá-los? Vários episódios recentes de programas de humor na TV brasileira ou charges publicadas na imprensa provocaram manifestações iradas a respeito de um suposto “limite do bom gosto” que teria sido ultrapassado – mesmo que esses limites sejam vagos e mutáveis de acordo com a opinião de quem se manifesta. Provocando mais de uma vez a pergunta, respondida com ânimos em graus variados de exaltação de parte a parte: há limites para o humor?


– Essa discussão sobre os limites do humor é algo que se debate há muito tempo – diz o linguista e professor de linguística da Unicamp Sírio Possenti, autor de Humor, Língua e Discurso (Contexto, 2010), entre outros livros que analisam o humor como fenômeno linguístico. – Qual a função do riso, se o riso é pecaminoso, uma polêmica já entre os teólogos medievais, ou ainda antes, entre os antigos, qual a função do humor na retórica, se o seu uso é legítimo. É uma questão velha como andar para frente e não diz respeito apenas ao humor. É a mesma discussão que já enfocou outras expressões artísticas: um livro deve descrever atos sexuais, deve usar linguagem chula? O que é literatura e o que é obscenidade? Existe o nu de bom gosto? O que parece diferente hoje é a atenção que a mídia desperta para cada caso.


O caso mais recente a acender o pavio do debate foi uma frase do jornalista e comediante Rafinha Bastos na bancada do programa televisivo CQC. Em resposta a um comentário de Marcelo Tas sobre o quanto a cantora Wanessa Camargo estava bonita grávida, Rafinha manifestou de bate-pronto que daria vazão a impulsos sexuais com ela e com o bebê. Dito de improviso, como muitas das intervenções do gaúcho no programa, o “caco” pegou os demais integrantes da bancada de surpresa e motivou protestos do marido da cantora, um empresário, e do sócio deste, o ex-jogador Ronaldo Nazário.


A pressão levou a uma suspensão do humorista e mais tarde a seu desligamento, anunciado esta semana. Personagem com outras polêmicas em seu currículo (durante um stand-up, disse que estuprador de mulher feia seria um herói, e em outra apresentação, associou uma marca de telefonia a celulares para criminosos e presidiários), Rafinha tornou-se uma espécie de emblema do debate, mas não é o único. Casos semelhantes ocorreram com quadros do Comédia MTV e do programa Pânico na TV, além de acusações de preconceito e até racismo contra piadas veiculadas na imprensa. Colega de CQC de Rafinha, Danilo Gentili foi alvo de pesada indignação ao fazer no Twitter uma piada associando os moradores do bairro Higienópolis, em São Paulo, supostamente de maioria judaica, a Auschwitz. Do lado de lá do fogo cerrado na opinião pública, os profissionais do humor reconhecem exageros, mas alertam para o perigo da simples e fácil solução proposta por muitos: o da censura, declarada ou disfarçada.


– Humor não deve ter bom gosto. É difícil estabelecer “limites” no humor. É um julgamento subjetivo. Já fui processado por causa de humor (bom, tinha também política no meio) na época da revista Dundum (anos 1980) e vi o quanto é complicado ser acusado por fazer uma piada. Se você condena alguém por causa disso, abre um precedente perigoso. Mas o humorista tem de saber que, dependendo do tema, vão existir reações. O bom senso é não bater na mesma tecla – diz Adão Iturrusgarai, cartunista de verve ácida que recentemente satirizou na charge reproduzida nesta página a suscetibilidade exacerbada que atinge o humor.


A opinião de Adão é semelhante à de um de seus mestres: Laerte Coutinho, um dos artistas de maior refinamento no atual panorama dos quadrinhos nacionais. Ele, contudo, lembra que o humor, embora não tenha limites, não é de todo inocente ou neutro, e cabe ao humorista assumir isso:


– Humor não tem nada a ver com “gosto” (de resto, acho que “gosto”, em si, é um conceito discutibilíssimo). É uma linguagem altamente sofisticada e não deve ter limite algum, como qualquer outra forma de expressão. O que não se pode é pretender que ele, humor, seja um discurso sem conteúdo ideológico. Não acredito em humor neutro, assim como não acredito em neutralidade na arte ou na ciência. Brasileiros, em relação ao humor como em relação a muitos outros itens, mantêm um padrão ambíguo de reação: por baixo do pano se apoia e se pratica, em frente às câmeras se indigna e exige providências.


Exagerar traço passíveis de serem caricaturados é característica ancestral do humor
É interessante notar também que, ao menos na TV, a discussão se dá na trincheira de um determinado humor que se pretende contemporâneo de seu tempo. Enquanto os episódios polêmicos envolveram Pânico na TV, CQC ou Comédia MTV (programas capitaneados por uma nova geração de humoristas muitas vezes apontados como renovadores por incorporar a seu humor elementos como jornalismo, temas do noticiário ou hits de internet), seguem incólumes outros programas de corte mais “tradicional”, voltados para a estrutura clássica de quadros e esquetes calcados na estereotipização de personagens e na força dos bordões, como A Praça é Nossa ou Zorra Total. É um humor muitas vezes “atemporal”, no qual ainda se ri da mesma mulher histérica e/ou perua ou do homossexual afetado que frequenta esse tipo de programa no Brasil desde a era do rádio. Talvez por apelar justamente a essa ancestralidade no imaginário brasileiro, tais atrações, embora por vezes criticadas, não têm registrado episódios semelhantes ao da turma mais nova. Diz Adão:


– Estou afastado do Brasil desde 2007, mas vejo os respingos das polêmicas por causa de algumas piadas mais “pesadas”. Eu já fiz coisas bem piores, mas em fanzines. Se você faz isso na TV a reação é mais dura. Agora, não vou citar nomes, mas tenho visto humoristas mais velhos condenarem as piadas do Rafinha e do Gentili, humoristas mais velhos que fizeram muita merda também. Tipo moral de calças curtas, moral de cueca.


Como a polêmica gira em torno de pessoas e grupos que se sentem ofendidos por piadas, ela vai até o cerne de uma das técnicas mais empregadas do humor, a de exagerar no objeto suas características caricaturáveis com o intuito de fazer rir. Como o humor parte sempre de uma base ideológica, como lembra Laerte, a pergunta se estende também sobre as possibilidades de um humor que não ofenda ninguém – e a responsabilidade do humorista, é claro. comenta Fernando Gonsales, criador do personagem Níquel Náusea:


– Acredito que é possível, mas é difícil. As pessoas se sentem ofendidas por coisas que jamais se suspeita. Às vezes até uma piada inocente pode ser lida como agressão.


A discussão, contudo, embora tenha despertado reclamações de histeria por parte de muitos defensores da irrestrita prerrogativa do humor, é interessante para a produção de uma massa crítica sobre o humor praticado no país.


– Toda polêmica é boa, mesmo que não se chegue a nenhuma conclusão, porque isso permite que você veja aspectos das questões que não conseguiria ver sozinho – diz Sírio Possenti.

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