sábado, 22 de outubro de 2011

Corda no pescoço


Por Reinaldo Azevedo
Há uma diferença entre mim e alguns que me combatem: não quero meus inimigos com uma corda no pescoço. Eu os quero vivos. Não quero principalmente ganhar a guerra. Quero lutar. É uma opção ética. É uma opção, de certo modo, estética. Ainda que “eles” queiram me eliminar — e àqueles que pensam como eu. Mesmo que eu os presenteie com objetos preposicionados como esse, cheio de elegância, só para declarar a minha animosidade amorosa — fiel, para quem sabe, à etimologia. Porque há de haver uma elegância entre os duelistas, como no filme - conhecem? Ganhar não é nada. Guerrear é tudo. A única vitória está na disputa.
Um esquerdista jamais entenderá do que falo. Ele sempre sabe aonde a história quer chegar. Eu não sei. Como Fernando Pessoa, o céu e a terra me bastam. Os que têm a forma do futuro estão tão certos de tudo! Eu estou certo apenas das minhas opiniões. E, na minha opinião, um homem com uma corda no pescoço é sempre deprimente. E agora direi algo “só para loucos, só para raros” (cito o Hermann Hesse de O Lobo da Estepe): é ainda mais triste um homem que já foi poderoso com a corda no pescoço. É razoável a suposição de que a forca e a força que o matam são mais íntimas do ressentimento do que da Justiça. Às vezes, acho que são sentimentos demais pra nossa condição tão miserável.
Aquela foto de Saddam Hussein com uma corda no pescoço obscureceu minhas idéias luminosas sobre o triunfo de uma civilização, de uma raça — a nossa, a dos humanos vira-latas —, de um modo de vida. Eu sei que ele matou. Eu sei que ele roubou. Eu sei que ele estuprou, ainda que por meio de terceiros. Mas que coisa! Minhas ambições não têm morte. Minhas ambições não têm roubo. Minhas ambições não têm estupro. Tão demasiadamente humano, coloco-me como o último na escola dos que julgam; o último na escala dos que apontam o dedo; o último na hierarquia dos bons. Como o Pessoa do Poema em Linha Reta, todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. Eu não consigo declarar a morte de um pernilongo chato numa casa à beira da praia sem que me assalte um dilema moral. Ele pode até ser tão breve quanto a vida de um pernilongo, ou tão inútil, mas estou inteiro em cada coisa. Estou inteiro naquele tapa. Sou inteiramente eu — e responsável — naquela sentença.
Aí me acusam ou me interrogam: “Mas como foi que um ex-esquerdista, mesmo trotskista, tornou-se tão anticomunista?” Aconteceu porque sei a dor e a delícia de não ter chefes ideológicos, de não poder atribuir a ninguém um gesto, uma sentença, um disparate. Todas as grandezas e todos os lixos do mundo me pertencem. Ah! Os petralhas são tão grandes e tão senhores de si! Eu sou porcaria. Eles celebram cantos de vitória. Eu topo ficar recolhendo os restos, os guardanapos amassados da festa, os copos de refrigerante quente pela metade, os doces só mordiscados e logo desprezados, as concentrações - acho, mas não estou certo, que a imagem é de Musil - das procissões que vão se dispersando. Ali, e este sou eu, onde a fé é mais rarefeita, onde todas as precariedades humanas se juntam num misto de dedicação e descrença. Eu sou este aí: dedicado e descrente, espreguiçando-se quando Deus se anunciou. Incrédulo. Cheio de fé.
Santo Deus! Eu nada tenho a fazer com cordas no pescoço! Nem no pescoço dos meus inimigos. Sobretudo no pescoço dos meus inimigos! Porque, vejam só, encontrasse eu uma justificativa para cena tão patética, eles estariam certos a meu respeito. Mas estão errados. E, por isso, são meus inimigos. Eu sou a vida e seu ofício. E eles contam os seus mártires, os seus heróis, jactam-se de suas paixões homicidas e suicidas. Eu acho a morte aquém e além de qualquer contenda. Que moral pode existir na morte? Que ética? Como pode nos sugerir o que quer que seja quem é tão íntimo do absoluto? Como é que um juiz consegue escolher o que comer ou a cor da própria cueca depois de decidir que alguém deve morrer? Se eu arbitrasse sobre a vida, não aceitaria nada além do Absoluto.
Por Reinaldo Azevedo

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