Fonte: ZH 28.08.2011
Mania de conflito empaca o Rio Grande
Moldado por uma cultura que valoriza o conflito e enredado na polarização ideológica e na força do corporativismo, o Rio Grande do Sul está ficando para trás, na comparação com outras unidades da federação, pela incapacidade gaúcha de criar consenso em torno de reformas e projetos fundamentais, um fenômeno que há décadas gera frustração entre os governantes que tentaram modernizar o Estado.
Bombachas e vestidos de prenda vão se espalhar pelas ruas, dentro de alguns dias, para as comemorações da Semana Farroupilha, um momento no qual a população gaúcha se irmana em torno de uma causa comum, a reverência ao 20 de Setembro e aos cultuados valores que, celebra o Hino Rio-grandense, devem servir de modelo a toda Terra.
Origem desse orgulho e dessa união, a Revolução Farroupilha carrega também, no ventre, a marca da nossa desunião, da discórdia que faz do Rio Grande do Sul o singular território onde as tentativas de reforma e de modernização são sistematicamente barradas por uma cultura de conflito que, se ofereceu glórias no passado, conturba o presente e compromete o futuro do Estado.
Essa tendência ao confronto que imobiliza tem como capítulo mais recente o cabo-de-guerra entre governo do Estado e Judiciário, mas é o feijão-com-arroz de todas as esferas da vida pública gaúcha. Afeta desde as iniciativas de mudança estrutural (caso das reformas na educação barradas pelo sindicato dos professores) até questões prosaicas (como a reposição das duas girafas mortas há um ano no zoológico, engavetada por causa da oposição de ativistas). Para entender as raízes do fenômeno, é preciso olhar para trás, para nossas origens históricas. O passado de guerras e revoluções que forjou a imagem do gaúcho delineou também um modelo de enfrentar os problemas baseado no conflito, e não na negociação. A cientista política Maria Izabel Noll observa:
– Por ser uma zona de fronteira, o Rio Grande do Sul foi um Estado muito militarizado, em situação de guerra constante. A tradição é de resolver pelo conflito. A Revolução Farroupilha inspira e perpetua esse modelo. O mito do gaúcho não é o do senhor civilizado e de fraque, bebendo chá, mas o do sujeito de lança e faca na mão, sempre pronto a defender seus interesses. O que vale é a lógica da defesa de território. Se uma corporação é atingida por alguma proposta de mudança, por exemplo, ela entende isso como tentativa de invasão pelo inimigo.
Quando se fala na Guerra dos Farrapos, o usual é apresentá-la como um confronto de gaúchos contra brasileiros. Escamoteia-se o fato de que ela foi, em larga medida, um embate de gaúchos contra gaúchos. Maria Izabel investiga, na UFRGS, esse pendor local à divisão entre dois campos políticos opostos. Ela identifica a persistência de um modelo partidário fortemente polarizado, que contrasta com o brasileiro e aproxima o Rio Grande do Sul da configuração política do Uruguai e da Argentina, de fronteiras também desenhadas a ponta de lança.
Mudam as siglas dos partidos, mas a polarização se mantém. Alimentados por nossa cultura de conflito, esses dois campos adotam o que Maria Izabel chama de política de soma zero: quem ganha, ganha tudo, quem perde, perde tudo:
– Os últimos governos adotaram um discurso conciliador, mas na prática o modelo persiste. A pressuposição de cada lado é a seguinte: eu e os meus somos o bem, os outros são o mal. Projetos com pontos positivos e negativos são rejeitados como um todo, porque não há negociação. O resultado é perdermos importância em relação a outros Estados, onde situação e oposição se unem em torno de questões fundamentais – diz Maria Izabel.
Um primeiro passo para construir consensos e destravar impasses seria vencer as barreiras ideológicas que polarizam o Rio Grande. O professor de Economia da UFRGS Flavio Comim nota que o Estado tem hoje uma configuração política anacrônica, dividida entre um “liberalismo pouco humano” e um “socialismo que não se preocupa com eficiência”. Diante de problemas, cada lado se agarra ao próprio ideário, em lugar de pensar no bem comum. Para complicar, a crise dos cofres públicos agravou o cenário. Como os recursos são parcos, a briga por eles ficou mais violenta.
– É um círculo vicioso. Na medida em que o conflito se acirra, as reformas não acontecem. Sem reformas, a crise do Estado se agrava e provoca mais acirramento. O fato de uma proposta partir do outro campo ideológico é suficiente para receber oposição – analisa Comim.
Sociedade civil ainda é omissa
Com isso, a receita para o imobilismo já está dada, mas o Rio Grande ainda adiciona a ela um ingrediente extra, com poder para brecar qualquer mudança: a força descomunal de que gozam corporações, sindicatos e grupos de interesse. Com alto teor de organização, esses setores têm cacife para influenciar o parlamento, mobilizar a opinião pública e gerar desgaste para os governantes que a eles se oponham. Na defesa encarniçada de seus interesses, aponta o cientista político Fernando Schüler, as corporações comprometem os serviços oferecidos pelo Estado. Os prejudicados são os mais pobres, que dependem de uma educação e de uma saúde públicas cada vez mais degradadas.
– A maior parte dos conflitos deriva da força de corporações. Para não perder privilégios e prerrogativas, são avessas a qualquer modernização. Combatem a meritocracia, a competitividade e a avaliação. Como resultado, o custo do Estado aumenta e os serviços decaem, prejudicando os pobres. Mas nunca vi passeata de pobre na frente do Piratini, só de sindicatos e corporações – afirma Schüler, que, na condição de secretário do governo passado, teve a experiência de ver um projeto para melhorar o atendimento a adolescentes infratores ser torpedeado e morrer na praia, apesar do apoio generalizado da Justiça e do Ministério Público.
Existe um ator que poderia desatar os nós cegos que atravancam o Estado, mas ele é omisso: a sociedade civil. O gaúcho enche o peito para dizer que é politizado, mas, na visão do professor Flávio Comim, o que temos é um corpo social apático, que não se posiciona diante dos grandes debates, como se eles não lhe dissessem respeito.
– A sociedade civil gaúcha não tem voz. Não discute, não faz manifestação pública, não protesta nas redes sociais. Vários conflitos seriam resolvidos se isso acontecesse. A opinião pública poderia ser o fiel da balança para fazer as decisões caírem para um dos lados.
Origem desse orgulho e dessa união, a Revolução Farroupilha carrega também, no ventre, a marca da nossa desunião, da discórdia que faz do Rio Grande do Sul o singular território onde as tentativas de reforma e de modernização são sistematicamente barradas por uma cultura de conflito que, se ofereceu glórias no passado, conturba o presente e compromete o futuro do Estado.
Essa tendência ao confronto que imobiliza tem como capítulo mais recente o cabo-de-guerra entre governo do Estado e Judiciário, mas é o feijão-com-arroz de todas as esferas da vida pública gaúcha. Afeta desde as iniciativas de mudança estrutural (caso das reformas na educação barradas pelo sindicato dos professores) até questões prosaicas (como a reposição das duas girafas mortas há um ano no zoológico, engavetada por causa da oposição de ativistas). Para entender as raízes do fenômeno, é preciso olhar para trás, para nossas origens históricas. O passado de guerras e revoluções que forjou a imagem do gaúcho delineou também um modelo de enfrentar os problemas baseado no conflito, e não na negociação. A cientista política Maria Izabel Noll observa:
– Por ser uma zona de fronteira, o Rio Grande do Sul foi um Estado muito militarizado, em situação de guerra constante. A tradição é de resolver pelo conflito. A Revolução Farroupilha inspira e perpetua esse modelo. O mito do gaúcho não é o do senhor civilizado e de fraque, bebendo chá, mas o do sujeito de lança e faca na mão, sempre pronto a defender seus interesses. O que vale é a lógica da defesa de território. Se uma corporação é atingida por alguma proposta de mudança, por exemplo, ela entende isso como tentativa de invasão pelo inimigo.
Quando se fala na Guerra dos Farrapos, o usual é apresentá-la como um confronto de gaúchos contra brasileiros. Escamoteia-se o fato de que ela foi, em larga medida, um embate de gaúchos contra gaúchos. Maria Izabel investiga, na UFRGS, esse pendor local à divisão entre dois campos políticos opostos. Ela identifica a persistência de um modelo partidário fortemente polarizado, que contrasta com o brasileiro e aproxima o Rio Grande do Sul da configuração política do Uruguai e da Argentina, de fronteiras também desenhadas a ponta de lança.
Mudam as siglas dos partidos, mas a polarização se mantém. Alimentados por nossa cultura de conflito, esses dois campos adotam o que Maria Izabel chama de política de soma zero: quem ganha, ganha tudo, quem perde, perde tudo:
– Os últimos governos adotaram um discurso conciliador, mas na prática o modelo persiste. A pressuposição de cada lado é a seguinte: eu e os meus somos o bem, os outros são o mal. Projetos com pontos positivos e negativos são rejeitados como um todo, porque não há negociação. O resultado é perdermos importância em relação a outros Estados, onde situação e oposição se unem em torno de questões fundamentais – diz Maria Izabel.
Um primeiro passo para construir consensos e destravar impasses seria vencer as barreiras ideológicas que polarizam o Rio Grande. O professor de Economia da UFRGS Flavio Comim nota que o Estado tem hoje uma configuração política anacrônica, dividida entre um “liberalismo pouco humano” e um “socialismo que não se preocupa com eficiência”. Diante de problemas, cada lado se agarra ao próprio ideário, em lugar de pensar no bem comum. Para complicar, a crise dos cofres públicos agravou o cenário. Como os recursos são parcos, a briga por eles ficou mais violenta.
– É um círculo vicioso. Na medida em que o conflito se acirra, as reformas não acontecem. Sem reformas, a crise do Estado se agrava e provoca mais acirramento. O fato de uma proposta partir do outro campo ideológico é suficiente para receber oposição – analisa Comim.
Sociedade civil ainda é omissa
Com isso, a receita para o imobilismo já está dada, mas o Rio Grande ainda adiciona a ela um ingrediente extra, com poder para brecar qualquer mudança: a força descomunal de que gozam corporações, sindicatos e grupos de interesse. Com alto teor de organização, esses setores têm cacife para influenciar o parlamento, mobilizar a opinião pública e gerar desgaste para os governantes que a eles se oponham. Na defesa encarniçada de seus interesses, aponta o cientista político Fernando Schüler, as corporações comprometem os serviços oferecidos pelo Estado. Os prejudicados são os mais pobres, que dependem de uma educação e de uma saúde públicas cada vez mais degradadas.
– A maior parte dos conflitos deriva da força de corporações. Para não perder privilégios e prerrogativas, são avessas a qualquer modernização. Combatem a meritocracia, a competitividade e a avaliação. Como resultado, o custo do Estado aumenta e os serviços decaem, prejudicando os pobres. Mas nunca vi passeata de pobre na frente do Piratini, só de sindicatos e corporações – afirma Schüler, que, na condição de secretário do governo passado, teve a experiência de ver um projeto para melhorar o atendimento a adolescentes infratores ser torpedeado e morrer na praia, apesar do apoio generalizado da Justiça e do Ministério Público.
Existe um ator que poderia desatar os nós cegos que atravancam o Estado, mas ele é omisso: a sociedade civil. O gaúcho enche o peito para dizer que é politizado, mas, na visão do professor Flávio Comim, o que temos é um corpo social apático, que não se posiciona diante dos grandes debates, como se eles não lhe dissessem respeito.
– A sociedade civil gaúcha não tem voz. Não discute, não faz manifestação pública, não protesta nas redes sociais. Vários conflitos seriam resolvidos se isso acontecesse. A opinião pública poderia ser o fiel da balança para fazer as decisões caírem para um dos lados.
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