02/08/2011
às 6:43
Já cheguei a pensar que povo próspero não suporta ditadura, mas era uma visão um tanto idealista do mundo, confesso. Não existe democracia se não se luta por ela. Deixadas à vontade, as sociedades aderem naturalmente ao mercado; é a nossa segunda natureza — a primeira, como todo bicho, é lutar pela sobrevivência. Com o regime democrático, é diferente. Trata-se de uma escolha— e, se querem saber, é a mais difícil. A ditadura é uma tentação permanente das sociedades e até, ou sobretudo, dos sábios. Deixadas à vontade, sem a vigilância permanente, elas caminham para a… tirania, não para a democracia!
O mundo está entrando numa quadra difícil. Desde que me ocupo da política — e eu comecei a me interessar muito cedo por isso, como sabem alguns dos meus professores do ginásio, que, felizmente, ainda estão por aí, firmes e fortes — , não me lembro de momento em que valores fundamentais da democracia estivessem sob tão forte especulação. Se o mercado venceu a batalha contra as chamadas economias planificadas — a esta altura, ninguém mais contesta isso; talvez só Fernando Haddad, que anteviu a sobrevivência do regime soviético, pouco antes de ele acabar… — , tenho certo receio de que a democracia representativa esteja perdendo a batalha para formas autoritárias de governo que trazem, vejam que curioso!, a marca da suposta “democracia direta”, que viria a substituir a outra (como se houvesse “outra”), considerada ineficaz para responder às demandas dos “oprimidos”. Num regime democrático, os “oprimidos”, noto à margem, são uma construção ideológica daqueles que falam em seu nome. A questão é lógica: se oprimidos, não se organizam nem se expressam; se o fazem, oprimidos não são, mas uma força política que disputa o poder. Se, mesmo no poder, querem conservar a aura de oprimidos, então são fascistas. Adiante.
Não é só no Brasil que valores essenciais da organização política democrática estão na linha de tiro. O que se viu nos últimos dias nos Estados Unidos, especialmente nos aparelhos ideológicos que servem ao Partido Democrata, evidencia de maneira insofismável que a tentação autoritária pode abalar valores que se julgavam inquebrantáveis. Depois que um editorial do New York Times acusou o Partido Republicado de ter deixado de lado o interesse do país para se ocupar só da guerra política — como se Barack Obama exercesse uma outra profissão —, então tudo passaria a ser permitido. E vozes daquele lugar que antes se chamava “A América” passaram a flertar abertamente com um “bypass” no regime democrático. Paul Krugman escreveu literalmente que o presidente deveria “evocar a lei” para ampliar o limite do endividamento, autorizasse o Congresso ou não! Mas qual lei? Não existe. Só um golpe!
Ora, mas o país não está em perigo? Se está, que diferença faz, então, haver ou não uma lei que discipline a ação do governante? Digam-me cá, meus queridos: que ditador, que tirano, que líder socialista ou fascista não alegaram justamente a urgência e a necessidade de preservar os elevados interesses do povo para impor a sua vontade e a de seu partido ou grupo? Ah, ocorre que, desta feita, haveria uma justificativa muito verossímil. Como disse o NYT, o Partido Republicano teria perdido de seu horizonte o interesse do povo, contaminada por uma suposta extrema direita reacionária e racista — se o presidente não fosse mestiço, não se poderia alegar essa segunda condição; como é, então serve… Vale dizer: é a condição objetiva do adversário dos republicanos que definiria o caráter destes…
Discutiram-se menos as propostas republicanas — ou do minoritário Tea Party —do que, e isto é estupefaciente, o seu direito de propor. À medida que ao grupo são atribuídos interesses perversos, malévolos, de contornos conspiratórios, então é evidente que ele perde a legitimidade para participar do jogo democrático, e suas ações deixam de ser vistas como parte da política para ser encaradas como sabotagem da democracia. O que foi que disse, por exemplo, o nosso Apedeuta-chefe em recente palestra na Escola Superior de Guerra? Segundo ele, ninguém deve se enganar com a oposição; ela quer que o Brasil dê errado, que a inflação dispare, que o desemprego cresça. O bem se torna um monopólio do governante de turno, como rezam aquele editorial do NYT e a quase totalidade da imprensa brasileira, que passou a demonizar “a direita americana”, que estaria planejando levar o país ao default só para tentar derrotar Obama em 2012.
Trata-se de um raciocínio escandaloso porque ele conduz ao óbvio: à oposição não caberia disputar eleição com uma pauta diferente daquela do partido do governo. Ou bem se concorda com as premissas e com os fundamentos dos detentores de turno do poder, ou bem pesará a suspeita de… sabotagem. Ao longo de oito anos, os petistas exploraram como ninguém, no Brasil, esse raciocínio torpe. Aliás, fazem-no ainda agora. Diante da impressionante avalanche de escândalos, acusa-se a oposição de estar em busca de uma pauta, qualquer uma; de torcer, em companhia da imprensa, para que o país quebre a cara, como anunciou o Babalorixá de Banânia.
Correntes de opinião de vários países democráticos, que disputam eleições e participam do jogo político, com um ideário que cabe em suas respectivas constituições, passam a ser tratadas como párias. Quantos textos bucéfalos vocês leram sustentando que o psicopata norueguês revelaria a real face da chamada extrema direita européia e até americana? Procurem: a delinqüência intelectual de certos “progressistas” chegou a associar o homicida ao Tea Party. Aprende-se, assim, que todas as forças políticas européias ou americanas que lutam pela preservação de alguns valores que consideram inegociáveis — muitos deles são pilares da democracia — seriam de inspiração fascista; toda proposta que tenta conter a imigração ilegal (que acaba sempre “legalizada”) seria necessariamente xenófoba; toda e qualquer contestação mesmo dos aspectos mais obscurantistas do islamismo seriam necessariamente preconceituosas. Vale dizer: a única pauta legítima, então, é a das esquerdas européias ou dos liberais americanos. Na Europa, a cascata não está colando junto ao eleitorado; nos EUA, vamos ver. Na América Latina, os especuladores contra a ordem democrática vivem, digamos assim, um “bom momento”.
De súbito, até o multiculturalismo — justificador das maiores violências, mundo afora, contra mulheres, crianças e os direitos individuais — passou a ser visto como um valor a ser preservado; todos aqueles que advogarem a supremacia moral dos valores democráticos estaria exibindo o seu compromisso com a discriminação, a xenofobia e a violência. Porque aquele delinqüente assassino da Noruega enxerga, por exemplo, o risco de islamização da Europa, críticas ao islamismo remeteriam a seu ato tresloucado. Perguntem o que pensam a respeito a somali exilada Ayaan Hirsi Ali e a iraniana e Prêmio Nobel da Paz (que não foi recebida por Dilma) Shirin Ebadi. Ora… Quando aquele vagabundo fez o que fez, vocês se lembram, afirmei aqui que ele estava prestando um enorme favor aos inimigos “progressistas” da democracia. Não por acaso, foi chamado de pronto de “direitista” e “fundamentalista cristão”.
Apontei outro dia aqui que a intransigência no Congresso americano tinha mão dupla; se havia irresponsabilidade dos republicanos, não era menor a dos democratas e, sobretudo, a de Barack Obama. Muita gente protestou. O plano adotado pelo presidente, o possível ao menos, foi aprovado ontem na Câmara e deve ser aprovado hoje no Senado, de maioria democrata. Pois bem: a proposta que acabou contando com o apoio presidencial teve apenas 95 votos democratas — outros 95 contra; apenas 66 republicanos disseram “não”. Na votação de ontem, quem apostou no impasse?
Remeto-os, mais uma vez, ao livro “Fascismo de Esquerda”, de Jonah Goldberg. Ele explica direitinho o comportamento dos democratas, do NYT, de Paul Krugman e de amplos setores da imprensa ocidental - a brasileira também. Leiam com atenção. Volto para arrematar:
“A ameaça peculiar representada pelas atuais religiões políticas de esquerda está, precisamente, em sua afirmação de que são livres de dogma. Em vez disso, professam ser campeãs da liberdade e do pragmatismo - que, a seu ver, são bens autoevidentes. Elas evitam preocupações ‘ideológicas’. Portanto, tornam impossível discutir suas idéias mais básicas e extremamente difícil expor as tentações totalitárias que residem em seus corações. Elas têm um dogma, mas o consideram fora de discussão. Em vez disso, nos forçam a argumentar com suas intenções, seus motivos, seus sentimentos. Os liberais [esquerdistas] estão certos porque ’se preocupam’, é o que nos dizem, e transformam ‘compaixão’ na palavra de ordem da política americana. Desse modo, os liberais controlam a discussão sem explicar aonde querem chegar e sem contar por onde andaram. Eles conseguiram sucesso onde os intelectuais fascistas acabaram falhando. Fizeram isso transformando paixão e ativismo em medidas de virtude política e fazendo os motivos parecerem mais importantes que os fatos. Além disso, numa brilhante manobra retórica, eles conseguiram isso, em grande parte, sustentando que seus oponentes é que são os fascistas.”
É isso aí. Vale para a política americana, vale para a política brasileira, vale para toda parte. Leiam o noticiário. A síntese que colou é a seguinte: os democratas querem ampliar o limite da dívida e cortar os privilégios dos ricos; já os republicanos querem cortar programas sociais e manter as mamatas. Afinal, os democratas, a exemplo dos nossos petistas por aqui, são os monopolistas da compaixão, têm sempre bons motivos e um coração de ouro.
E, como vimos, muitos deles acham que, por isso, podem até mandar a democracia para o diabo que a carregue.
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