O problema,
para ele (nosso ex-ministro da justiça), não está na impunidade dos criminosos, e sim na imprensa — que fica
falando muito do assunto e acaba criando um “clamor popular” contra os réus.
Esse clamor popular, naturalmente, tem dois rostos.
É bom quando vai a favor das posições defendidas por Bastos e por quem pensa
como ele; é chamado, nesse caso, de “opinião pública”. É
ruim quando vai contra; é chamado, então, de “linchamento moral”.
Por J.R. GUZZO (REVISTA VEJA)
O advogado paulista Márcio Thomaz Bastos encontra-se, aos
76 anos de idade, numa posição que qualquer profissional sonharia ocupar. Ao
longo de 54 anos de carreira, tornou-se, talvez, o criminalista de maior
prestígio em todo o Brasil, foi ministro da Justiça no primeiro mandato do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus honorários situam-se hoje entre os
mais altos do mercado — está cobrando 15 milhões de reais, por exemplo, do
empresário de jogos de azar Carlinhos Cachoeira, o mais notório de seus últimos
clientes. Num país que tem mais de 800 mil advogados em atividade, chegou ao
topo do topo entre seus pares. É tratado com grande respeito nos meios
jurídicos, consultado regularmente pelos políticos mais graúdos de Brasília e
procurado por todo tipo de milionário com contas a acertar perante o Código
Penal. Bastos é provavelmente o advogado brasileiro com maior acesso aos meios
de comunicação. Aparece em capas de revista. Publica artigos nos principais
veículos do país. Aparece na televisão, fala no rádio e dá entrevistas.
Trata-se, em suma, do retrato acabado do homem influente. É especialmente
perturbador, por isso tudo, que diga em voz alta as coisas que vem dizendo
ultimamente. A mais extraordinária delas é que a imprensa “tomou partido”
contra os réus do mensalão, a ser julgado em breve no Supremo Tribunal Federal,
publica um noticiário “opressivo” sobre eles e, com isso, desrespeita o seu
direito de receber justiça.
Se fosse apenas mais uma na produção em série de
boçalidades que os políticos a serviço do governo não param de despejar sobre o
país, tudo bem; o PT e seus aliados são assim mesmo. Mas temos, nesse caso, um
problema sério: Márcio Thomaz Bastos não é um boçal. Muito ao contrário,
construiu uma reputação de pessoa razoável, serena e avessa a jogar combustível
em fogueiras; é visto como um adversário de confrontos incertos e cético quanto
a soluções tomadas na base do grito. É aí, justamente, que se pode perceber com
clareza toda a malignidade daquilo que vem fazendo, ao emprestar um disfarce de
seriedade e bom-senso a ações que se alimentam do pensamento totalitário e
levam à perversão da justiça. Por trás do que ele pretende vender como um
esforço generoso em favor do direito de defesa, o que realmente existe é o
desejo oculto de agredir a liberdade de expressão e manter intacta a impunidade
que há anos transformou numa piada o sistema judiciário do Brasil. Age, nesses
sermões contra a imprensa e pró-mensalão, como um sósia de Lula ou de um
brucutu qualquer do PT; mas é o doutor Márcio Thomaz Bastos quem está falando —
e se quem está falando é um crânio como o doutor Márcio, homem de sabedoria
jurídica comparável à do rei Salomão, muita gente boa se sente obrigada a ouvir
com o máximo de respeito o que ele diz.
O advogado Bastos sustenta, em
público, que gosta da liberdade de imprensa. Pode ser — mas do que ele
certamente não gosta, em particular, é das suas consequências. Uma delas, que o
incomoda muito neste momento, é que jornais e revistas, emissoras de rádio e de
televisão falam demais, segundo ele, do mensalão, e dizem coisas pesadas a
respeito de diversos réus do processo. Mas a lei não estabelece quanto espaço
ou tempo os meios de comunicação podem dedicar a esse ou aquele assunto, nem os
obriga a ser imparciais, justos ou equilibrados; diz, apenas, que devem ser
livres. O que o criminalista número 1 do Brasil sugere que se faça? Não pode, é
claro, propor um tabelamento de centímetros ou minutos a ser obedecido
pelos veículos no seu noticiário sobre casos em andamento nos tribunais — nem
a formação de um conselho de justos que só autorizaria a publicação de material
que considerasse neutro em relação aos réus. Os órgãos de imprensa podem, com
certeza, ter efeito sobre as opiniões do público, mas também aqui não há como
satisfazer as objeções levantadas pelo advogado Bastos. O público não julga
nada; este é um trabalho exclusivo dos juízes, e os juízes dão as suas
sentenças com base naquilo que leem nos autos, e não no que leem em jornais.
Será que o ex-ministro da Justiça gostaria, para cercar a coisa pelos quatro
lados, que a imprensa parasse de publicar qualquer comentário sobre o mensalão
um ano antes do julgamento, por exemplo? Dois anos, talvez? Não é uma opção
prática — mesmo porque jamais se soube quando o caso iria ser julgado.
MINISTRO REPROVADO
A verdade é que a pregação de Márcio
Thomaz Bastos ignora os fatos, ofende a lógica e deseduca o público. De onde
ele foi tirar a ideia de que os réus do mensalão estão tendo seus direitos
negados por causa da imprensa? O julgamento vai se realizar sete anos após os
fatos de que eles são acusados — achar que alguém possa estar sendo prejudicado
depois de todo esse tempo para organizar sua defesa é simplesmente
incompreensível. Os réus gastaram milhões de reais contratando as bancas de
advocacia mais festejadas do Brasil. Dos onze ministros do STF que vão
julgá-los, seis foram indicados por Lula, seu maior aliado, e outros dois pela
presidente Dilma Rousseff. Um deles, José Antonio Toffoli, foi praticamente um
funcionário do PT entre 1995 e 2009, quando ganhou sua cadeira na corte de
Justiça mais alta do país, aos 41 anos de idade e sem ter nenhum mérito
conhecido para tanto; foi reprovado duas vezes ao prestar concurso para juiz, e
esteve metido, na condição de réu, em dois processos no Amapá, por recebimento
ilícito de dinheiro público. Sua entrada no STF, é verdade, foi aprovada pela
Comissão de Justiça do Senado; mas os senadores aprovariam do mesmo jeito se
Lula tivesse indicado para o cargo um tamanduá-bandeira. O próprio
ex-presidente, enfim, vem interferindo diretamente em favor dos réus — como
acaba de acusar o ministro Gilmar Mendes, com quem teve uma conversa em
particular muito próxima da pura e simples ilegalidade. Mas o advogado Bastos,
apesar disso tudo, acha que os acusados não estão tendo direito a se defender
de forma adequada.
Há uma face escura e angustiante na escola de pensamento
liderada por Bastos, em sua tese não declarada, mas muito clara, segundo a qual
a liberdade de expressão se opõe ao direito de defesa. Ela pode ser percebida
na comparação que fez entre o mensalão e o julgamento do casal Alexandre
Nardoni e Anna Carolina Jatobá, condenados em 2010 por assassinarem a filha
dele de 5 anos de idade, em 2008, atirando a menina pela janela do seu
apartamento em São Paulo — crime de uma selvageria capaz de causar indignação
até dentro das penitenciárias. Bastos adverte sobre o perigo, em seu modo de
ver as coisas, de que os réus do mensalão possam ter o mesmo destino do casal
Nardoni; tratou-se, segundo ele, de um caso típico de “julgamento que não
houve”, pois os meios de comunicação “insuflaram de tal maneira” os ânimos que
acabou havendo “um justiçamento” e seu julgamento se tornou “uma farsa”. De
novo, aqui, não há uma verdadeira ideia; o que há é a negação dos fatos. Os
Nardoni tiveram direito a todos os exames técnicos, laudos e perícias que
quiseram. Foram atendidos em todos os seus pedidos para adiar ao máximo o
julgamento. Contrataram para defendê-los um dos advogados mais caros e
influentes de São Paulo, Roberto Podval — tão caro que pôde pagar as despesas
de hospedagem, em hotel cinco-estrelas, de 200 amigos que convidou para o seu
casamento na ilha de Capri, em 2011, e tão influente que um deles foi o
ministro Toffoli. (Eis o homem aqui, outra vez.)
Ao sustentar que o casal Nardoni foi
vítima de um “justiçamento”, Bastos ignora o trabalho do promotor Francisco
Cembranelli, cuja peça de acusação é considerada, por consenso, um clássico em
matéria de competência e rigor jurídico. Dá a entender que os sete membros do
júri foram robôs incapazes de decidir por vontade própria. Mais que tudo, ao
sustentar que os assassinos foram condenados pelo noticiário, omite a única
causa real da sentença que receberam — o fato de terem matado com as próprias
mãos uma criança de 5 anos. Enfim, como fecho de sua visão do mundo, Bastos
louvou, num artigo para a Folha de S.Paulo, a
máxima segundo a qual “o acusado é sempre um oprimido”. Tais propósitos são
apenas um despropósito. Infelizmente, são também admirados e reproduzidos, cada
vez mais, por juristas, astros do ambiente universitário, intelectuais,
artistas, legisladores, lideranças políticas e por aí afora. Suas ações,
somadas, colocaram o país numa marcha da insensatez — ao construírem ano após
ano, tijolo por tijolo, o triunfo da impunidade na sociedade brasileira de
hoje.
ABERRAÇÃO IRRELEVANTE
O Brasil é um dos poucos países em
que homicidas confessos são deixados em liberdade. O jornalista Antonio
Pimenta, por exemplo, matou a tiros sua ex-namorada Sandra Gomide, em 2000, e
admitiu o crime desde o primeiro momento; só foi para a cadeia onze anos
depois, num caso que a defesa conseguiu ir adiando, sem o apoio de um único
fato ou motivo lógico, até chegar ao Supremo Tribunal Federal. Homicidas,
quando condenados, podem ter o direito de cumprir apenas um sexto da pena. Se
não forem presos em flagrante, podem responder em liberdade a seus processos.
Autores dos crimes mais cruéis têm direito a cumprir suas penas em prisão
aberta ou “liberdade assistida”. Se tiverem menos de 18 anos, criminosos perfeitamente
conscientes do que fazem podem matar quantas vezes quiserem, sem receber
punição alguma; qualquer sugestão de reduzir esse limite é prontamente
denunciada como fascista ou retrógrada pelo pensamento jurídico que se
tornou predominante no país. O resultado final dessa convicção de que só
poderá haver justiça se houver cada vez mais barreiras entre os criminosos e a
cadeia está à vista de todos. O Brasil registra 50 000 homicídios por ano — e
menos de 10% chegam a ser julgados um dia.
Nosso ex-ministro da Justiça, porém, acha irrelevante essa
aberração. O problema, para ele, não está na impunidade dos criminosos, e sim
na imprensa — que fica falando muito do assunto e acaba criando um “clamor
popular” contra os réus. Esse clamor popular, naturalmente, tem dois rostos.
É bom quando vai a favor das posições defendidas por Bastos e por quem pensa como ele; é chamado, nesse caso, de “opinião pública”. É ruim quando vai contra; é chamado, então, de “linchamento moral”. A impunidade para crimes descritos como “comuns”, e que vão superando fronteiras cada vez mais avançadas em termos de perversidade, é, enfim, só uma parte dessa tragédia. A outra é a impunidade de quem manda no país. Não poderia haver uma ilustração mais chocante dessa realidade do que a cena, há duas semanas, em que a maior liderança política do Brasil, o ex-presidente Lula, se submete a um beija-mão em público perante seu novo herói, o deputado Paulo Maluf — um homem que só pode viver fora da cadeia no Brasil, pois no resto do planeta está sujeito a um mandado internacional de prisão a ser cumprido pela Interpol. É, em suma, o desvario civilizado — tanto mais perigoso por ser camuflado com palavras suaves, apelos por uma “justiça moderna” e desculpas de que a “causa popular” vale mais que a moral comum. Um dos maiores criminalistas que já passaram pelo foro de São Paulo, hoje falecido, costumava dizer que o direito penal oferece apenas duas opções a um advogado. Na primeira, ele se obriga a só aceitar a defesa de um cliente se estiver honestamente convencido de sua inocência. Na segunda, torna-se coautor de crimes. O resto, resumia ele, é apenas filosofia hipócrita para justificar o recebimento de honorários. Há um abismo entre a postura desse velho advogado e a do doutor Márcio. Fica o leitor convidado, aqui, a ecolher qual das duas lhe parece mais correta.
É bom quando vai a favor das posições defendidas por Bastos e por quem pensa como ele; é chamado, nesse caso, de “opinião pública”. É ruim quando vai contra; é chamado, então, de “linchamento moral”. A impunidade para crimes descritos como “comuns”, e que vão superando fronteiras cada vez mais avançadas em termos de perversidade, é, enfim, só uma parte dessa tragédia. A outra é a impunidade de quem manda no país. Não poderia haver uma ilustração mais chocante dessa realidade do que a cena, há duas semanas, em que a maior liderança política do Brasil, o ex-presidente Lula, se submete a um beija-mão em público perante seu novo herói, o deputado Paulo Maluf — um homem que só pode viver fora da cadeia no Brasil, pois no resto do planeta está sujeito a um mandado internacional de prisão a ser cumprido pela Interpol. É, em suma, o desvario civilizado — tanto mais perigoso por ser camuflado com palavras suaves, apelos por uma “justiça moderna” e desculpas de que a “causa popular” vale mais que a moral comum. Um dos maiores criminalistas que já passaram pelo foro de São Paulo, hoje falecido, costumava dizer que o direito penal oferece apenas duas opções a um advogado. Na primeira, ele se obriga a só aceitar a defesa de um cliente se estiver honestamente convencido de sua inocência. Na segunda, torna-se coautor de crimes. O resto, resumia ele, é apenas filosofia hipócrita para justificar o recebimento de honorários. Há um abismo entre a postura desse velho advogado e a do doutor Márcio. Fica o leitor convidado, aqui, a ecolher qual das duas lhe parece mais correta.
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