Como se vê, o Brasil, esse distraído, precisa atualizar a legenda do famoso encontro: se quiser continuar dizendo que ali está a esquerda sujando as mãos com a direita, vai ter que inverter a foto.
Por Guilherme Fiuza REVISTA ÉPOCA – edição 737
O Brasil ético está escandalizado com o aperto de mão entre Lula e
Paulo Maluf. O ex-presidente teria ido longe demais com esse gesto. É uma
concessão muito grave para tentar eleger um prefeito, dizem os homens de bem. E
o assunto não sai de pauta, com a corrente de indignação se espalhando pela
imprensa, pelas escolas e esquinas desse Brasil ultrajado. Todo cientista
político teve sua chance de dizer que aquela foto é um divisor de águas no
processo ideológico brasileiro, um retrocesso no campo progressista, um
monumento ao vale tudo. Mas nunca é tarde para avisar a esta nação
escandalizada: o aperto de mão entre Lula e Maluf não tem a menor importância.
Um comentarista bradava no rádio um dia desses: “Maluf apoiou a
ditadura!” Não, essa não é a grande credencial do ex-governador de São Paulo.
Vamos a ela: Maluf é procurado pela Interpol. Independentemente dos resultados
dos vários processos de que já foi réu por corrupção, Maluf é símbolo de
cinismo e trampolinagem. Mesmo assim, não pode fazer mal nenhum a Lula.
O ex-operário que governou o Brasil por oito anos escolheu como um
de seus principais aliados José Sarney. Para quem não está ligando o nome à
pessoa, Sarney é o protagonista do caso Agaciel Maia – aquele que revelou a
transformação do Senado Federal em balcão de favores particulares. Em
telefonemas divulgados pela TV em horário nobre, Sarney aparecia usando a
presidência do Senado para reger o tráfico de influência na cúpula do Poder
Legislativo. Mostrando influenciar também o Judiciário, o parceiro de Lula
conseguiu, através do filho Fernando, instituir a censura prévia ao jornal “O
Estado de S. Paulo”, até hoje proibido de mencionar a investigação dos atos
secretos operados por Agaciel.
O que fez Lula diante desse escândalo? Disse que Sarney não podia
ser julgado como uma pessoa comum. Segurou-o bravamente na presidência do
Senado. Até que a tempestade passasse, deu-lhe a mão e não soltou mais. Qual o
problema então de dar a mão a Maluf, só um pouquinho, para eleger o príncipe do
Enem?
O aperto de mão com Sarney incluiu outras manobras típicas da
ditadura que Maluf apoiou. Lula mandou sua ministra Dilma Rousseff intervir na
Receita Federal para resolver pendências fiscais da família Sarney. Essa
denúncia foi feita por Lina Vieira, ex-secretária da Receita, que contou
detalhes do abuso de poder da então chefe da Casa Civil. Lina aceitou uma
acareação com Dilma, que fugiu (e depois virou presidente).
Quando sua sucessora saiu em campanha, Lula nomeou como
ministra-chefe da Casa Civil a inesquecível Erenice Guerra. Braço direito de
Dilma, com quem confeccionou o dossiê Ruth Cardoso (contrabando de informações
de Estado para chantagem política), Erenice montou um bazar com parentes e
amigos no palácio. Apesar de ter afundado crivada de evidências de tráfico de
influência, Erenice recentemente foi puxada pela mesma mão que apertou a de
Maluf: desinibido, o padrinho já tenta publicamente ressuscitá-la.
As aventuras de Dilma e Erenice só foram possíveis com queda do
antecessor, José Dirceu – o que mostra uma verdadeira linhagem criada por Lula
na Casa Civil. E Dirceu só caiu porque o suicida Roberto Jefferson resolveu
atrapalhar um esquema que estava funcionando perfeitamente. Pois bem: no
momento em que a Justiça se prepara para julgar o mensalão, maior escândalo de
corrupção já visto na República, protagonizado por todos os homens do
presidente Lula, o Brasil resolve se escandalizar porque o chefe supremo dos
mensaleiros tirou uma foto com Paulo Maluf.
É sempre triste deixar a inocência para trás, mas vamos lá.
Coragem. Em todo o seu vasto e conhecido currículo, Maluf jamais chegou perto
de engendrar um golpe dessa dimensão: o uso do poder central para fazer uma
ligação direta dos cofres públicos com a tesouraria do partido do presidente. O
malufismo nunca sonhou com um valerioduto.
Como se vê, o Brasil, esse distraído, precisa atualizar a legenda
do famoso encontro: se quiser continuar dizendo que ali está a esquerda sujando
as mãos com a direita, vai ter que inverter a foto.
E para concluir o jogo dos sete erros: qual dos dois usou crachá
de coitado para vampirizar o Estado? Roubar a boa fé dá quantos anos de cadeia?
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