Viveremos agora sob a ditadura da abobrinha e da ginástica?
Por Reinaldo Azevedo
A tolerância anda em baixa.
É claro que eu não me orgulho de fumar. Dizem que faz mal, e eu acredito. Infelizmente, não faço apenas coisas que são boas pra mim. Lembro-me de Lucrécio, que vai citado de cabeça. Se alguém achar o literal, pode mandar: se a alma fosse imortal, não deploraria tanto o fato de, morrendo, dissolver-se. Não é aquilo em que acredito. Mas gosto dessa consciência da finitude.
Até parece que defendi soltar baforadas na cara de quem não fuma. Eu não. Sou um rapaz educado. Quero ter o direito de fumar onde nao incomode ninguém. Não é pedir tanto assim, convenham. Não quero é o estado enfiando o dedo no meu nariz dizendo: “Você não tem o direito de se matar”. Ele que vá se danar.
É igual a droga ou a dirigir alcoolizado? Não é. Quero fumar onde outros também fumem, de sorte que não possamos fazer mal nenhum a não ser a nós mesmos — se for essa a nossa escolha. De fato, não tenho paciência com drogados e bêbados. Mas não dou a mínima para o que as pessoas fazem com o seu nariz. Defendo é severa repressão ao tráfico: é uma questão social, política, de segurança pública. Só isso. Não se trata de uma escolha moral. Essa eu já fiz: não me drogo e não convivo com quem se droga. Por quê? Rejeito os valores que vêm junto com o “produto”. E se o mundo inteiro liberasse o consumo? Ora, eu estaria com Milton Friedman. Mas isso não vai acontecer. Naquela questão do ecstasy, que tanta polêmica rendeu aqui, a minha crítica foi política: o estado não tem de se meter nessa porcaria. Tem é de seguir a lei e reprimir traficantes.
Reitero: ditadura é fácil; democracia é que é difícil. E é evidente que o mais democrático, então, é permitir que os estabelecimentos definam suas políticas de acordo com a sua clientela. O sujeito quer fazer um bar ou restaurante onde o cigarro é terminantemente proibido? Excelente. Haverá um aviso na porta. Terá mercado. Que eu saiba, a maioria não fuma. Outro quer ficar com os fumantes ou os que não se importam com isso? Idem. Dêem-me uma boa razão para que não seja assim. “Ah, cigarro faz mal”. Tá bom. Bacon também. A poluição é péssima. Gordura trans entope as veias do coração. Ovo foi reabilitado, mas já matou.
Viveremos agora sob a ditadura da abobrinha e da ginástica?
Aí me diz alguém: “Você acha que é livre fumando, mas você é um doente porque é viciado”. Sou? Não quero que me tolerem por isso. Mas ninguém pode me impedir, então, de me reunir com outros doentes, os meus semelhantes. Há um quê de guerra santa nessa história. Acho absolutamente legítimo que as pessoas combatam o cigarro e não queiram nem mesmo ficar na presença de um fumante. Mas daí a partir para uma política de segregação e demonização do outro? Não dá. Quanto tempo demorará para que passemos a olhar os gordos com desconfiança, na certeza de que são incapazes de controlar a gula?
É verdade. Dante reservou um círculo no Inferno para os obsessivos. É uma grande referência literária. Mas não serviria como modelo de democracia, acho eu.
Na minha casa, só fumo no meu escritório, com as janelas abertas e a porta fechada. Minhas filhas detestam cigarro e fazem uma verdadeira campanha para que eu pare de fumar. E eu faço campanha para que elas conjuguem o futuro do subjuntivo de verbos irregulares — e cobrarei um dia todas as orações subordinadas adverbiais. A vida é assim: não sou exemplo perfeito a ser seguido nem por elas. Saberão fazer as suas escolhas — e eu sou apenas uma das influências. Não estou brincando de Papai Sabe Tudo, Papai Perfeição, que nunca “tivesse levado porrada”, “campeão em tudo”. Também eu terei sido, quem sabe?, “tantas vezes reles, tantas vezes vil, tantas vezes irrespondivelmente parasita”…
Há nessa história toda, meus caros, uma certa ilusão, que me parece regressiva, totalitária mesmo, de criar um ser humano sem defeitos, sem máculas, todo feito de bons propósitos, de bom sentimentos, de hábitos saudáveis — no fundo, uma negação da nossa humana precariedade.
Não quero soltar fumaça na cara de ninguém. Mas não tentem fazer da política de saúde o redutor único da vida em sociedade. Como é mesmo? “A diferença entre um estado benfeitor e um estado totalitário é uma questão de tempo” (Ayn Rand)
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