Tão menores seriam as atrocidades, burrices, brigas e rabugices se os detentores de poder tivessem mais humildade. Se tivessem consciência, a cada nascer do sol, que o poder não lhes pertence, apenas foi concedido por algum tempo(..) Se não se rodeassem tanto de bajuladores e tão pouco de equivalentes. Se fizessem mais o óbvio no lugar de excêntricas invencionices.
Por Cleber Benvegnú
Ney Michelucci, atual diretor do Trensurb e meu ex-chefe, é um homem de frases originais. Simples, porém certeiras. Sempre que um poderoso caia do trono – algo cada vez mais corriqueiro no cotidiano do Brasil –, ele repetia uma sentença: “Todo espertalhão, em algum momento da vida, se depara com alguém mais esperto do que ele”.
Essa assertiva deveria estar constantemente próxima à consciência de quem exerce algum cargo de comando. Ricardo Teixeira, por exemplo. É preciso ter noção da finitude do poder. Tal como uma onda, o poder vai e vem. Sobe e desce. Talvez não venha, mas é certo que irá. Talvez não suba, mas é certo que descerá. Nunca perdura para sempre. E não haveria de ser diferente: nem a vida terrena consegue sobreviver, quanto menos uma ordem.
É claro que, em alguns casos, pode durar décadas e gerações – aos moldes do aparentemente interminável Sarneyzismo. Mas sempre acaba, passa. Sempre. Foi o que ocorreu, a propósito, para permanecer na parte geograficamente alta do país, com o reinado de Antônio Carlos Magalhães, o painho baiano. Outrora imbatível, seu legado restou reduzido quase a pó. Pisoteado e humilhado, às vezes até com um tantinho de injustiça.
Nelson Rodrigues relata, em O Reacionário, a passagem de sua visita a um amigo que se tornara ministro interino. Em uma reunião na qual o cronista se fez presente, o novo poderoso usava e abusava de suas prerrogativas. Fazia questão de mostrar que estava grandão. Mas disse que mantinha uma equipe unida, a começar pelos contínuos do Ministério. Esse seria seu segredo de sucesso. Ao ir embora, intrigado, Nelson lascou ao primeiro estagiário que lhe cruzou pela frente: “Que tal o nosso ministro interino?”. Resposta: “Uma besta. Um cavalo”. Ou seja: na real, o chefe não tinha o respeito sequer de seu reles contínuo.
O psiquiatra Dacio Wichrowski – calma, só fui tratar de uma dolorosa perda familiar –, há alguns anos, me ensinou que existem três fontes principais de poder humano: beleza, dinheiro e discernimento. (De pronto, me apeguei ao discernimento – minha única chance de ter algum poder na vida, pensei eu.) A beleza tem prazo de validade logo ali. Que dó dos que casam tão-somente em virtude dela. É um amor, apenas aparente, que cai junto com a força da gravidade. O dinheiro, ator principal das aspirações mundanas, se não estiver bem acompanhado, nada consegue além de prazeres vazios de essência. E o discernimento, pobre moço, tem a força apenas dos argumentos.
Por falar em força, pretensiosamente a incluo na lista do Dr. Dácio. A força das armas, por exemplo, gera poder no ambiente político internacional. Nas mãos de um bandido, pode causar a morte. Os músculos de um pitboy amedrontam, afastam, machucam e até matam. Mas essas fibras carnais logo embrandecem. As armas dependem das mãos e da decisão. Sozinhas, são nada mais do que metal fundido. A força, portanto, precisa de algo que a preceda. Senão é apenas poder em potencial.
Em comum, todos esses predicados têm a finitude. Terminam. Senão em vida, inequivocamente com a morte – por isso que o poder, quando exercido por alguém com elevação espiritual, tem chance de ser mais consciente, humilde, na medida. Quem crê que a vida acaba por aqui mesmo tende a abusar dos meios para chegar aos seus fins. Porque seus fins são puramente terrenos, materiais. Nada esperam do transcendente.
Nos anos de observação política que a vida até aqui me possibilitou, um dos desvirtuamentos mais comuns que constatei foi o exercício do poder como se fosse infinito. E não apenas de governadores, ministros, secretários ou deputados, senão que também de assessores e amigos do rei. Muitos são os que se lambuzam com a doce geleia do poder – chimia, se diz lá em Casca. Alguns, coitados, quando jovens promotores de Justiça derrubam seus castelos de carta, ainda estão todos melecados. E eis que vai pelo ralo não apenas o poder que detinham, senão que, desgraçadamente, também a estrutura emocional e familiar que possuíam.
Caio Rocha, hoje secretário nacional da Agricultura, também tem uma assertiva perfeita sobre isso: “Todo político se acha mais do que realmente é”. Vindo dele, um político, a frase adquire verdade ainda maior. Durante alguns meses de minha vida, fui assessor parlamentar. E também comprovei, presencialmente, que Caio estava certo. Poucos são os que, como ele, conseguem ter autocrítica e consciência da limitação de suas próprias possibilidades. Os flashes da admiração pública inibem com facilidade quem não tem os pés no chão. Alguém já escreveu que não há orgasmo mais intenso do que esse, inclusive o orgasmo propriamente dito.
Tão menores seriam as atrocidades, burrices, brigas e rabugices se os detentores de poder tivessem mais humildade. Se tivessem consciência, a cada nascer do sol, que o poder não lhes pertence, apenas foi concedido por algum tempo. Se, ao olhar o outro, tivessem mais compreensão e menos arrogância. Se ouvissem mais do que falassem. Se não invocassem uma sapiência suprema, admitindo erros e voltando atrás. Se, em vez de tanta maledicência, elogiassem mais. Se não intrigassem pessoas umas contra as outras. Se não se rodeassem tanto de bajuladores e tão pouco de equivalentes. Se fizessem mais o óbvio no lugar de excêntricas invencionices.
Nestas idas e vindas – ainda atuo no mundo político, mas agora como profissional de comunicação sem vínculo –, continuo vendo muitos se estatelando com o famoso dia seguinte. O dia em que a pesada caneta perde a tinta. O dia em que o café esfria para sempre. Alguns sabem resolver seus próprios dilemas – os que anteviram a finitude do poder. Outros, os embevecidos, caem sem a menor proteção. E não lhes restam sequer amigos para aparar a queda, nem mesmo os bajuladores – normalmente já abrigados debaixo de outra saia. Basta olhar para a história política recente do Rio Grande do Sul, por exemplo, para constatar quantas vezes isso aconteceu. E continuará acontecendo. Muitos se foram, outros tantos irão.
Volta-me Michelucci, meu ex-chefe, homem de boas frases – e um grande executivo do setor público. Dizia também: “A pessoa é o que ela é, todos sabem”. Ou seja: para além do poder, o que perdura mesmo é a essência das pessoas, sua integridade, dignidade, postura, o jeito com que trata os demais. Seus feitos, suas atitudes. Quem cuida disso permanece depois dos mandatos ou dos cargos. Mantém o respeito. E é dessa mesma vertente, que exercita a humildade e respeita o próximo, que nasceram os maiores estadistas da humanidade. São os que passarinho, enquanto os outros apenas passarão – para concluir com Mario Quintana, neste post de tão afetuosas citações.
Então, poderosos de ontem, hoje e amanhã, tenham para si: o poder humano é finito. E para os que creem: o único poder eterno é o de Deus. Simples assim.
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