Só mesmo no entendimento de certas autoridades que, por ignorância ou prepotência, se julgam capazes de alterar a realidade, como os inquisidores medievais que obrigaram Galileu a negar a teoria do heliocentrismo (...) Também agem como tutores indesejáveis dos cidadãos os julgadores que avocam para si a prerrogativa de decidir o que deve ou não ser publicado pela imprensa ou pelos novos instrumentos de mídia.
Editorial de Zero Hora (04.03.12)
Mais do que um monumental equívoco, a ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em Uberlândia, pedindo a retirada de circulação do Dicionário Houaiss, evidencia o arbítrio de autoridades que se julgam no direito de tutelar a sociedade. O episódio só não é risível porque o procurador responsável pelo pedido acredita mesmo que está combatendo um preconceito. Ele considerou ofensiva a acepção do termo “cigano” usada para designar um indivíduo “trapaceiro, velhaco, burlador”. Isso que o dicionário adverte que se trata da definição da palavra no seu uso pejorativo.
Ora, os dicionários existem para conceituar a rea-lidade da língua. Registram os significados das palavras, positivos ou negativos. Assim como o vocábulo “cigano”, inúmeros outros termos da língua portuguesa assumem sentido depreciativo quando utilizados com esse propósito. E não será a supressão arbitrária de uma palavra que fará a população deixar de usá-la. Exemplos não faltam. O termo “judeu”, que designa a pessoa nascida na antiga Judeia ou que segue a religião e a tradição judaicas, também é empregado popularmente para definir uma pessoa avarenta ou usurária. O substantivo “madrasta”, criado para designar a relação de uma mulher com os filhos que o marido teve num matrimônio anterior, ganhou maior evidência na acepção de pessoa pouco carinhosa, ingrata, má.
Adianta eliminá-los do dicionário? Ou mandar recolher os dicionários que registram as acepções depreciativas? Só mesmo no entendimento de certas autoridades que, por ignorância ou prepotência, se julgam capazes de alterar a realidade, como os inquisidores medievais que obrigaram Galileu a negar a teoria do heliocentrismo, baseada na correta ideia de que a Terra e os demais planetas de nosso sistema giram em torno do Sol.
Também agem como tutores indesejáveis dos cidadãos os julgadores que avocam para si a prerrogativa de decidir o que deve ou não ser publicado pela imprensa ou pelos novos instrumentos de mídia. A liberdade de expressão é uma cláusula pétrea da Constituição brasileira. Todas as pessoas têm o direito de dizer, escrever ou divulgar aquilo que pensam, sabendo que poderão ser responsabilizadas quando cometerem impropriedades. Não podem, porém, ser impedidas previamente de se manifestar.
A censura prévia é ainda mais absurda do que a ordem para recolher o que já foi publicado, como pretende o procurador mineiro. É como condenar alguém pela simples suposição de que vai cometer um crime. Além disso, ao impedir a opinião pública de fazer o seu próprio julgamento dos fatos, o censor cassa um direito quase divino do ser humano, que é o livre-arbítrio. Os patrulheiros da língua equivocam-se duplamente, pois atentam contra a liberdade dos cidadãos de interpretarem o que ouvem e leem conforme seu entendimento, e ainda tentam inutilmente interferir na propriedade natural dos vocábulos de adquirirem outros sentidos pela vontade das pessoas que os utilizam.
Guardadas as proporções, censurar o dicionário equivale a tentar fazer o Sol girar em torno da Terra.
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