sexta-feira, 8 de junho de 2012

Muquiranagem em estado sólido (David Coimbra)

O Rio Grande do Sul é um Estado muquirana. O que não significa que todos os gaúchos sejam muquiranas, claro. Muitos não são. Mas há uma névoa de muquiranagem pairando entre a fronteira oeste histórica e as franjas procelosas do Oceano Atlântico, infiltrando-se, sobretudo, nos palácios do poder. As pessoas olham e não acham a muquiranagem um defeito grave, mas é justamente essa característica que faz do Estado o que menos investe em educação, o que tem a masmorra mais desumana do país, o que oferece um dos 10 piores sistemas de tratamento da água do Brasil, o que apresenta um índice de 97% de reprovação num teste para professores, o que elege governantes que só conseguem administrar escorchando o contribuinte.


A muquiranagem é um problema sério porque dá à pessoa a justificativa para não fazer o melhor que pode. O muquirana é isso: é aquele que bota material de segunda, que pretere a beleza pela economia, que confunde o popular com o barato, que considera luxo o que é sofisticado. O muquirana nunca ousa, ele alega que existem outras prioridades. O prefeito muquirana diz assim:

– Eu não posso transformar essa orla em um local aprazível para as pessoas se divertirem, enquanto outras pessoas passam fome na vila.

Aí ele não transforma a orla em um local aprazível para as pessoas se divertirem, e as outras pessoas continuam passando fome na vila.

Não faço a ilustração por acaso. É que está justamente ali, espalhado na orla do Guaíba, o maior exemplo de muquiranagem da cidade. Nos anos 80, o então prefeito Collares rasgou num naco dessa orla a última obra pública não muquirana da Capital: a Avenida Beira-Rio. Havia algumas propostas questionáveis no projeto, como a permissão de construção de arranha-céus, mas, no geral, era uma ótima ideia, muito mais abrangente do que se tornou. Mesmo assim, Collares por pouco não foi derrubado da prefeitura. Um dia, milhares de muquiranas foram para o local, um ermo repleto de touceiras, lixo e mendigos que se drogavam em meio às ratazanas. Os muquiranas deram-se as mãos e, simbolicamente, “abraçaram a orla”, na tentativa de protegê-la do asfalto do capitalismo. Gritavam que, por “consciência ecológica”, impediriam a derrubada da vegetação nativa (a propósito: aquilo é um aterro).

Hoje, se você fizer um passeio pela Beira-Rio, constatará que ali está a mais bela avenida da cidade. Abstenha-se de olhar para os quiosques bagaceiras do Gasômetro e para as peças de arte contemporânea plantadas nas imediações. Veja as pessoas caminhando, correndo, passeando de bicicleta e até de patins, veja-as tomando chimarrão, admirando o espelho d’água do rio-lago, fazendo exercícios, rindo e conversando. Elas estão felizes. Entre elas, os muquiranas. Que não fizeram nada. Muquiranas não fazem. Nem deixam fazer.

Um comentário:

  1. Tiago, tomo a liberdade de compartilhar meu comentario sobre a muquiranagem no seu Blog. Aliás, muito bom Blog. Abs, JCesar
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    David,

    "Long time no see"! Tenho te acompanhado com orgulho de quem te viu começar já com o talento luzidio que exibes hoje.
    Tenho repartido minha vida entre POA e São Francisco, CA, onde tenho residencia. E como estou nesta ponte, fico o tempo todo dividido entre a vibração original e realizadora de SF e o aconchego amigo mas sem inspiração de POA.

    Dificil dizer onde prefiro estar. Lá sou mais um, provavelmente compondo a legião dos legados em um mundo avançado e fascinante. Aqui, passo por sábio em um mundo atrasado e fora das rotas do desenvolvimento.

    Por isso tua coluna de hoje, se não me deixou confortado pela identidade de percepções, me deixou certo de que a tua a e a minha são as percepções da maioria. Afinal voce é lido por multidões. E se você está tão bem acompanhado falando sobre a muquiranagem gaucha, então por que continuamos a fazer as mesmas coisas que só podem gerar os mesmo resultados? Reclamamos, criticamos os outros, apontamos erros mas, caralho!, nada muda.

    Que o Estado está quebrado e no rol dos que tem a pior saude adminsitrativa e financeira, isso todos sabem. Mas onde está a proposta de "incentivar" a demissão de 30% do funcionalismo?

    Que nossa economia está de lado e tem setores bichados (calçados, vinhos,...) que só fucionam com a "nordestinização" de beneficios providos pelo Governo, isso tb. todos sabem. E onde está a politica industrial que privilegia setores diferentes?

    E o que falar das "vacas sacradas", individuos e instituições? O que a Gerdau tem a dizer para nossos jovens mestres e doutores? Que disputem uma vaga no controle de estoque da firma? Ou que peguem seus passaportes e vazem daqui por que aqui onde se qualificaram não queremos saber desses talentos?

    E as Fiergs da vida? Todo mundo sabe que não servem pra nada. Nada!!! Que mamam na arrecadação (tributo) compulsoria para fazer de conta que lideram alguma coisa quando se sabe que os movimentos mais sadios e enérgicos pro recuperação da economia americana estão passando por cima deste tipo de organização patronal anacrônica.

    A gente é sim muquirana como tu disseste.

    E a única razão que vejo para isso é que degeneramos nosso comportamento. Como é comum nas familias onde o fundador é sucedido por arremedos cada vez mais opacos até a falência, nossos antepassados, que arrancaram o RS das trevas para colocá-lo entre os mais pujantes - embora a tremenda desvantagem competitiva da localização, foram sucedidos por nossos pais e contemporâneos, compondo a geração de herdeiros complacentes de um legado grandioso. Nos acostumamos a perder. E quem se acostuma a peder é perdedor. Losers!

    E, diferente de nossos antepassados que ergueram o RS, somos normais demais. Nos falta a audácia, a ambição e a coragem que celebramos neles.

    Nunca nos reinventamos, nunca rompemos com o que não tem mais gloria, que é só velho e obsoleto. Carregamos a imagem do passado junto com uma cacarecagem inutil que nos faz parecer patéticos em nossa ambição provinciana e desengajada de grandeza.

    Isso resulta que temos hoje menos de 7% do PIB nacional com uma âmbito decisório de menos de 3%. Esta é a fatia sobre a qual nossos filhos e netos devem disputar um lugar ao sol.

    Muquiranagem é uma externalidade. O resultado da muquiranagem é mais dramático que isso.

    Falta loucura aos filhos do Rio Grande!

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