Os hooligans são uma resposta fácil, barata, ingênua e bruta dirigida à esfinge que pergunta ao homem o que ele é.
POR MÁRIO CORSO*
A questão da violência ligada ao
futebol é complexa e multifacetada, mas talvez possa ser entendida a partir dos
deslocamentos da identidade masculina no século 20
Existe
uma personagem oculta na Eurocopa 2012: a polícia. De uns anos para cá, ela
tanto se sofisticou em prevenir os conflitos entre torcedores fanáticos que
eles estão minimizados. Não foram os hooligans que perderam a força, é a
repressão que os mantêm na linha. Quase todos os países europeus têm problemas
com eles, mas foram trocando experiências e criando políticas coercitivas até
que se chegou a um equilíbrio de controle.
O Estado
os combate, mas nunca entendeu seus motivos. Creio que tampouco a
intelectualidade europeia se debruçou o suficiente sobre eles para saber qual é
a bússola que usam (se é que a tem), as razões da sua fúria besta, seu amor
desmesurado por uma bandeira clubística e, ocasionalmente, por sua seleção.
Afinal, quem são esses brigões da pequena causa? O que querem esses rebeldes de
uma causa tão rebaixada? Por que jovens trabalhadores europeus, vários com
empregos razoáveis, remuneração idem, preenchem sua vida com futebol, brigas e
álcool? Por que essa violência gratuita e sem sentido os cativa?
A
questão é complexa, multifacetada, mas creio que uma das chaves para
entendê-los passa por pensar nos deslocamentos da identidade masculina do
século 20. E, é claro, simetricamente, no novo papel da mulher. O mundo
industrial já fez do trabalhador peça de uma engrenagem que o transcende. Há
uma alienação básica, mas ao menos ele era homem, entre outras coisas, porque
ia para rua trabalhar, cabia-lhe trazer o pão para casa. Ser homem estava
ligado a esse lugar social e familiar, a mulher estava em casa nos seus
afazeres domésticos e subordinada ao marido. Socialmente o homem tinha o papel
principal, mesmo que algum indivíduo fosse sem valor, ele seguia superior à
metade da humanidade. Por sorte, isso mudou drasticamente: a mulher conquistou
um lugar no espaço público, saiu da tutela do homem e hoje ganha para seu
sustento. Dentro do casamento, outrora berço da tirania masculina, ocorreu o
mesmo, não existe mais a assimetria onde a mulher era submissa, não autorizada
a pensar e ter opiniões. Enfim, o trabalho já não ajuda a definir o que é ser
homem. Ganhar dinheiro tampouco, mandar na mulher também não, o que é ser homem
então?
O século
20 foi, infelizmente, pródigo em guerras. As guerras convocam o homem para um
dos arquétipos da condição masculina, o guerreiro. A I e a II Guerra, depois a
Guerra Fria e as lutas anti-coloniais, apesar do cataclismo humano, forneciam
um lenitivo para a identidade masculina. O varão seguia nesse ponto útil,
indispensável, um peça valiosa da engrenagem bélica. A economia e os valores da
modernidade esvaziavam a representação da figura clássica masculina, como
provedor e mestre, mas a guerra lhe contrabalançava o prestígio como soldado. O
que fazer agora que a Europa se pacificou?
Observamos
no século passado o declínio de todas as formas de filiação, daquilo que nos
faz pertencer a um grupo. Todas tornaram-se mais frágeis, elas já não amarram
uma identificação como antes. Ser inglês, francês ou alemão numa Europa que usa
a mesma moeda e tem fronteiras abertas já não define claramente alguém. A
cultura de massas avançou sobre as culturas locais e tradicionais, dando vida a
novas personagens de identificação para sonhar, a globalização da cultura dilui
fronteiras, vários povos cultivam os mesmos heróis e vilões. Os ofícios
tampouco lembram as antigas guildas e corporações, com seus códigos e costumes,
além disso os homens trocam de profissão, e mesmo as diferenças entre os
ofícios não são claras. O que vale é ter dinheiro e não como se o obtém. Poucas
profissões ainda devolvem uma imagem que sirva como âncora identificatória.
Da parte
das religiões o quadro não é diferente, o mundo desencantou, e o papel das
crenças ficou secundário, pouco definidor, apenas funciona para os poucos que
se tornam radicais em tentar fazer valer o mundo antigo da religiosidade
perdida. Ser católico, anglicano, ou protestante tanto faz, talvez o judaísmo e
o islamismo ainda costurem um sentido peculiar, que não se confunda com o
establishment convencional. Os grandes partidos políticos também são uma sombra
do que foram, especialmente no sentido de uma escolha política definir uma
identidade que dê sentido a uma vida. Não existem mais brigas por causas,
talvez a ecologia seja a exceção, mas essa é, ou deveria ser, de todos. Enfim, vivemos
a falência das formas tradicionais de identificação, das ideologias e das
filiações, portanto cada vez é mais difícil saber quem se é e a que grupo
pertencemos.
O homem
de hoje segue trabalhando, com mais exigências de desempenho, e sem as regalias
antigas, ainda que ilusórias, de seu gênero. Vê a mulher seguir seus passos e
muitas vezes o ultrapassar; não sabe como ser amado e admirado por elas, antes
bastava ser homem, hoje ele não sabe o que elas querem. O homem está solto,
avulso no plano das ideias. Sem nada em volta que lhe devolva uma imagem do que
ele é como cidadão e tampouco uma consistência viril, outrora refúgio das
certezas. Resta-lhe o futebol, a paixão por um time, a violência da rua, essa
inequivocamente, um lugar de machos. O hooligan é o homem que não conta com uma
guerra, então a inventa; não tem mais uma nação, uma causa, porém achou um
clube para incondicionalmente e irracionalmente amar. O totem clubístico vem no
lugar do pai decaído, da nação diluída, o time é a única tribo que consegue
amar. O time não lhe pede nada e lhe diz atrás de que cores ele poderá vibrar
para se sentir parte de algo.
Outro
fato intrigante dessa questão é que os valores do individualismo cruzaram o
século em alta e a tendência é seguir nessa direção, por que então um
comportamento de massa, onde o indivíduo se funde no anonimato, consegue
adeptos tão entusiastas? Talvez o hooligan seja também uma denúncia de
mal-estar na individualidade, um protesto em ato. Ali alguém deixa de ser ele
mesmo para pertencer a uma multidão, imerge no mar do não ser, aceita a vontade
coletiva, quer estar num rebanho que economiza a reflexão.
O
comportamento hooligan é a subversão das demandas por ser em nome próprio, de
carregar o peso de ser original e ímpar, é a vontade de ser massa e descansar a
cabeça das exigências abstratas, intangíveis, que são colocadas ao homem de
hoje. Os hooligans são uma resposta fácil, barata, ingênua e bruta dirigida à
esfinge que pergunta ao homem o que ele é. Ao invés de olhar para frente, ele
olha para trás, junta os farrapos dos uniformes dos avós e faz uma bandeira
anacrônica e sem sentido, que já não honra ninguém, uma caricatura de soldado
num simulacro de guerra. Só extrai sentido social nessa cruzada patética contra
a polícia e contra outros, tão perdidos como ele. Bebe a última gota de uma
imagem masculina que já não se sustenta. É a imagem do ocaso do macho
tradicional.
*Psicanalista,
membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, autor de Psicanálise na
Terra do Nunca: Ensaios sobre a Fantasia”, entre outros
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