(..) a ideia de que a administração pública é mais importante que utopias, de que as reformas do Estado eram fundamentais. Medidas simples, óbvias, indutivas, tentaram nos tirar da eterna “anestesia sem cirurgia.” Foi o Plano Real que tirou 28 milhões de pessoas da pobreza, e não este refrão mentiroso que os petistas repetem sobre o Bolsa Família ou sobre o PAC imaginário.
(..) Outro sintoma claro é que as
instituições democráticas estão sem força, desmoralizando-se, já que o próprio
governo as desrespeita. Essa fragilização da democracia traz de volta um desejo
de autoritarismo na base do “tem de botar para quebrar!”. Já vi muito chofer de
táxi com saudades da ditadura.
(..) O Brasil está sofrendo uma mutação gravíssima, e nossas cabeças também. É preciso tirar do poder esses caras que se julgam os “sujeitos da história”. Até que são mesmo, só que de uma história suja e calamitosa.
(..) O Brasil está sofrendo uma mutação gravíssima, e nossas cabeças também. É preciso tirar do poder esses caras que se julgam os “sujeitos da história”. Até que são mesmo, só que de uma história suja e calamitosa.
Por Arnaldo Jabor (O Globo)
O Brasil está irreconhecível. Nunca
pensei que a incompetência casada com o delírio ideológico promoveria este
caos. Há uma mutação histórica em andamento. Não é uma fase transitória; nos
últimos 12 anos, os donos do poder estão a criar um sinistro “espírito do
tempo” que talvez seja irreversível. A velha “esquerda” sempre foi um sarapatel
de populismo, getulismo tardio, leninismo de galinheiro e agora um
desenvolvimentismo fora de época. A velha “direita”, o atraso feudal de nossos
patrimonialistas, sempre loteou o Estado pelos interesses oligárquicos.
A chegada do PT ao governo reuniu em
frente única os dois desvios : a aliança das oligarquias com o patrimonialismo
do Estado petista. Foi o pior cenário para o retrocesso a que assistimos.
Antes dessa terrível dualidade
secular, a mudança de agenda do governo FHC por sorte criou um pensamento mais
“presentista”, começando com o fim da inflação, com a ideia de que a
administração pública é mais importante que utopias, de que as reformas do
Estado eram fundamentais. Medidas simples, óbvias, indutivas, tentaram nos
tirar da eterna “anestesia sem cirurgia.” Foi o Plano Real que tirou 28 milhões
de pessoas da pobreza, e não este refrão mentiroso que os petistas repetem
sobre o Bolsa Família ou sobre o PAC imaginário.
Foi um período renegado pelo PT como
“neoliberal” ou besteiras assim, mas deixou, para nossa sorte, algumas migalhas
progressistas.
Tudo foi ignorado e substituído pelo
pensamento voluntarista de que “sujeitos da história” fariam uma remodelagem da
realidade, de modo a fazê-la caber em suas premissas ideológicas. Aí começou o
desastre que me lembra a metáfora de Oswald de Andrade, de que “as locomotivas
estavam prontas para partir, mas alguém torceu uma alavanca e elas partiram na
direção oposta”.
Isso causa não apenas o caos
administrativo com a infraestrutura morta como também está provocando uma
mutação na psicologia e no comportamento das pessoas. O Brasil está sendo
desfigurado dentro de nossas cabeças, o imaginário nacional está se deformando.
Há uma grande neurose no ar. E isso
nos alarma como a profecia de Lévi-Strauss de “que chegaríamos à barbárie sem
conhecer a civilização.” Cenas como os 30 cadáveres ao sol no pátio do
necrotério de Natal, onde os corpos são cortados com peixeiras, fazem nossa pele
mais dura e o coração mais frio. Defeitos e doçuras do povo, que eram nossa
marca, estão dando lugar a sentimentos inesperados, dores nunca antes sentidas.
Quais são os sintomas mais visíveis desse trauma histórico?
Por exemplo, o conceito de solidariedade
natural, quase “instintiva”, está acabando. Já há uma grande violência do povo
contra si mesmo.
Garotos decapitam outros numa prisão,
ônibus são queimados por nada, com os passageiros dentro, meninas em fogo,
presos massacrados, crianças assassinadas por pais e mães, uma revolta sem
rumo, um rancor geral contra tudo. O Brasil está com ódio de si mesmo. Cria-se
um desespero de autodestruição, e o país começa a se atacar.
Outro nítido efeito na cabeça das
pessoas é o fatalismo: “É assim mesmo, não tem jeito, não.” O fatalismo é a
aceitação da desgraça. E vêm a desesperança e a tristeza. O Brasil está triste
e envergonhado.
Outro sintoma claro é que as
instituições democráticas estão sem força, desmoralizando-se, já que o próprio
governo as desrespeita. Essa fragilização da democracia traz de volta um desejo
de autoritarismo na base do “tem de botar para quebrar!”. Já vi muito chofer de
táxi com saudades da ditadura.
A influência do petismo também
recriou a cultura do maniqueísmo: o mal está sempre no outro. Alguém é culpado
disso tudo, ou seja, a “média conservadora” e a oposição.
A ausência de uma política contra a
violência e a ligação de muitos políticos com o tráfico estimula a organização
do crime, que comanda as cadeias e já demonstra uma busca explícita do horror.
A crueldade é uma nova arte incorporada em nossas cabeças, por tudo o que vemos
no dia a dia dos jornais e TV. Ninguém mata mais sem tortura. O horror está
ficando aceitável, potável.
O desgoverno, os crimes sem solução,
a corrupção escancarada deixam de ser desvios da norma e vão criando uma nova
cultura: a cultura da marginalidade, a “normalização” do crime.
Uma grande surpresa foi a condenação
da Copa. Logo por nós, brasileiros boleiros. Recusaram o “pão e circo” que
Dilma/Lula bolaram, gastando mais de R$ 30 bilhões em estádios para
“impressionar os imperialistas” e bajular as massas. Pelo menos isso foi um
aumento da consciência política.
Artistas e intelectuais não sabem o
que pensar — como refletir sem uma ponta de esperança? Temos aí a
“contemporaneidade” pessimista.
Cria-se uma indiferença progressiva e
vontade de fuga. Nunca vi tanta gente falando em deixar o país e ir morar fora.
As mutações mentais são visíveis: nos rostos tristes nos ônibus abarrotados, na
rápida cachaça às 6h da manhã dos operários antes de enfrentar mais um dia de
inferno, nos feios, nos obesos, no desânimo das pessoas nas ruas, no pessimismo
como único assunto em mesas de bar.
Vimos em junho passado manifestações
bacanas, mas sem rumo; contra o quê? Um mal-estar generalizado e sem clareza,
logo escrachado pelos black blocs, a prova estúpida de nosso infantilismo
político.
É difícil botar a pasta de dente para
dentro do tubo. Há uma retroalimentação da esculhambação generalizada que vai
destruindo as formas de combatê-la. Tecnicamente não estamos equipados para
resolver as deformações que se acumulam como enchentes, como um rio sem foz.
E o pior é que, por trás da cultura
do crime e da corrupção, consolida-se a cultura da mentira, do bolivarianismo,
da preguiça incompetente e da irresponsabilidade pública.
O
Brasil está sofrendo uma mutação gravíssima, e nossas cabeças também. É preciso
tirar do poder esses caras que se julgam os “sujeitos da história”. Até que são
mesmo, só que de uma história suja e calamitosa.
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