Daqui a um tempo, não será
surpreendente se alguém sugerir extinguir as federais e transferir seu
orçamento para boas universidades. As leis e manobras que deveriam garantir a
sua opulência terão causado sua implosão
Por GUSTAVO IOSCHPE (REVISTA VEJA)
A família do meu pai chegou ao Brasil, com uma mão
na frente e outra atrás, no começo do século XX. A da minha mãe aportou aqui
fugindo do nazismo. Em ambos os casos, portanto, muito depois da abolição da
escravidão. Caso a lei das cotas raciais e econômicas nas universidades
federais seja sancionada, fico imaginando o que eu — e milhões de brasileiros
com histórico parecido — diria ao meu filho se ele fosse excluído de uma vaga
em universidade federal em benefício de um negro ou indígena com pior
desempenho acadêmico. Não haveria o que dizer. Pessoalmente, acredito que o
critério racial fere a isonomia, que é a base da democracia, e tisna o
republicanismo com sectarismo. Racismo sempre é ruim, tanto o movido por ódios
quanto o por intenções nobres. Espero que os militantes da causa negra não se
iludam: esse projeto não é uma grande vitória, mas uma cortina de fumaça. Em
primeiro lugar, porque o racismo brasileiro não é causado por políticas
governamentais que precisam ser revertidas, como era o caso americano, mas sim
por atitudes de foro íntimo de uma parte dos nossos concidadãos. A concessão de
cotas não mudará esse preconceito e corre-se o risco de exacerbá-lo. E, segundo
e mais importante, porque o efeito dessa lei não passa de migalha. Reportagem
da Folha de S.Paulo calculou que o número de vagas reservadas nas universidades
federais aumentaria em 70.000 com as cotas. A maneira de tirar milhões de
negros da privação é melhorando a qualidade do ensino básico.
Não fosse o componente racial no projeto de lei
aprovado pelo Congresso — que destina 50% das vagas das universidades federais
a alunos que cursaram o ensino médio em escolas públicas, a ser distribuídas
respeitando a divisão racial de cada estado - , eu poderia dar-lhe o benefício
da dúvida. Com o componente racial, sou contra.
Há bons argumentos favoráveis e bons argumentos
contrários à concessão de cotas a alunos da rede pública de ensino, sem
discriminação por raça. Os favoráveis: a medida aumenta o acesso de alunos de
baixa renda à universidade, promovendo equidade social. Também pode fazer com
que pais da classe média baixa tirem seus filhos de escolas particulares e os
matriculem em escolas públicas. A pesquisa sugere que esse público de maior
renda e instrução deverá gerar melhoria de qualidade na escola pública. Os
argumentos contrários: além de ferir a meritocracia, o que conceitualmente é
lamentável para uma instituição de ensino, a chegada de alunos despreparados às
universidades federais poderia ameaçar sua qualidade, acabando com boa parte da
pouca pesquisa que o país produz.
O tempo dirá se os efeitos negativos vencerão os
positivos. É uma questão mais empírica do que opiniática. Se essa lei for mais
um prego no caixão das universidades federais, é importante notar que o
eventual óbito terá sido caso de suicídio assistido. Não assassinato. Agora
reitores e professores protestam contra essa lei específica, mas as sementes do
mal foram plantadas por eles. Porque nas últimas décadas as universidades
federais se protegeram tanto, amealharam tanto dinheiro dando tão pouco em troca
à sociedade, que hoje não têm mais autoridade para esperar que essa sociedade
as proteja.
A marcha da insensatez começou com o artigo 207 da
Constituição, que declara a “indissociabilidade entre ensino e pesquisa” nas
universidades. Já seria estranho ter uma lei qualquer defendendo que o
separável é, em realidade, inseparável, mas consagrar isso na Constituição do
país é estapafúrdio. O resultado prático dessa lei é que 90% dos professores
das federais são remunerados como se fossem pesquisadores em tempo integral, o
que a grande maioria não é. Se quase todos são tratados assim sem que precisem
produzir pesquisa, obviamente há pouco incentivo para que se faça pesquisa de
ponta. A maioria dessas instituições é pouco produtiva. No ranking mundial de
universidades do Times londrino, não há nenhuma universidade federal entre as
400 melhores do mundo. Ainda há grandes professores e pesquisadores, mas as
universidades federais exigem que toda a rede seja tratada de forma homogênea,
gerando dupla injustiça: não valoriza os que merecem e sobrevaloriza os que
nada ou pouco produzem. Esses últimos ainda fazem greves, como a de agora. Essa
estrutura toma o custo das universidades federais estratosférico: seu aluno
custa quase seis vezes mais do que o aluno do ensino fundamental, o mais caro
entre todos os países medidos. Finalmente. as federais resistiram e continuam
resistindo a planos de expansão de vagas. Fazer universidades novas em zonas
desprestigiadas pode, mas aumentar agressivamente o número de alunos nas universidades
‘"nobres”, isso não. Assim, o orçamento do Ministério da Educação destina
23,7 bilhões de reais às federais e elas matriculam apenas 763.000 alunos,
menos de 15% das matrículas totais do setor. Se a instituição das cotas tiver
efeito adverso sobre a qualidade das federais, é provável que haja mais um
êxodo de matrículas para o setor privado, fomentando o desenvolvimento de
instituições de ponta nesse setor. Daqui a um tempo, não será surpreendente se
alguém sugerir extinguir as federais e transferir todo o seu orçamento para
boas universidades privadas ou estaduais. Todas as leis e manobras que deveriam
garantir a opulência e complacência das universidades federais terão causado
sua implosão.
Na escola, havia um colega que não conseguia
acompanhar o ritmo na maioria das matérias e era vítima de gozação da turma. Um
dia, ao receber mais uma provocação de outro colega que tampouco era grande
aluno, ele se revoltou: “Tu, não! Vai descolorir o boletim antes de abrir a
boca”. O Ideb, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, que dá uma nota
de zero a 10 para a qualidade de todas as escolas públicas do Brasil, mostra
que o boletim do país é um mar de notas vermelhas.
O Ministério da Educação, ao divulgar os
resultados, enfatiza o (pequeno) progresso e o fato de 77% dos municípios terem
atingido a meta. A verdade é que não há razão para contentamento. A média cai
de 5,0 no 5° ano para 3.7 ao fim do ensino médio. Quanto mais tempo nosso aluno
permanece na escola, pior é o seu desempenho. As metas do Ministério da
Educação são ridículas, mais uma herança maldita do preclaro Haddad. Estipulam
que. em 2021, o Brasil tenha o mesmo desempenho dos países da OCDE... em 2006!
Isso não é meta, é uma confissão de derrota. Até 2021 esses países terão
evoluído muito, e os problemas de competitividade do Brasil, causados pelo
nosso apagão escolar, continuarão terríveis.
Como sabem os leitores desta coluna, só acredito
que teremos mudanças significativas quando a população cobrar educação de
qualidade. Políticos só atacarão o problema da educação com o devido empenho
quando o mau resultado lhes custar votos. O ldeb 2011 pode ser um instrumento
valioso nesse processo, porque pela primeira vez temos uma série histórica que
permite avaliar o desempenho de redes municipais em um mandato inteiro de
prefeitos, justamente em ano eleitoral. Para dar minha pequena colaboração, as
tabelas aqui reproduzidas mostram, entre as cidades com mais de 100.000
habitantes, quais as redes municipais que mais melhoraram e as que mais pioraram
no país, e também aquelas que obtiveram os melhores e os piores resultados
absolutos. Em twitter.com/gioschpe você encontra os dados completos do Ideb por
município, por estado e pelo país, desde 2005. Espero que ajude na hora de
votar para prefeito.
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