O Estado brasileiro desembaraça-se do princípio
do mérito alegando que se trata de critério "elitista". Na verdade, é
o avesso disso: a meritocracia difundiu-se no pensamento ocidental com as
Luzes, junto com o princípio da igualdade perante a lei, na hora do combate aos
critérios aristocráticos de promoção escolar e preenchimento de cargos no
serviço público. Naquele contexto, para suprimir a influência do "sangue
azul" na constituição das burocracias públicas, nasceram os concursos
baseados em exames.
A meritocracia é o alicerce que sustenta as modernas burocracias estatais, traçando limites ao aparelhamento político da administração pública. Escandalosamente, a elite política brasileira reserva para si a prerrogativa de nomear os ocupantes de centenas de milhares de cargos de livre provimento, uma fonte inigualável de poder e corrupção. A ofensiva dos "amigos do povo" contra o princípio do mérito tem a finalidade indireta, mas estratégica, de perpetuar e estender o controle dos partidos sobre a administração pública.
Por Demétrio Magnoli
A assinatura da deputada Nice Lobão - campeã em faltas na Câmara e
esposa do ministro Edison Lobão, protegido de José Sarney - no projeto de lei
de cotas nas instituições federais de ensino superior e médio é um desses
acasos repletos de significados. Por intermédio de Nice, a nova elite política
petista se abraça às elites tradicionais numa santa aliança contra o princípio
do mérito. Os aliados exibem o projeto como um reencontro do Brasil consigo
mesmo. De um modo perverso, eles têm razão.
Nunca antes uma democracia aprovou lei similar. Nos EUA as políticas de
preferências raciais jamais se cristalizaram em reservas de cotas numéricas.
Índia e África do Sul reservaram parcelas pequenas das vagas universitárias a
grupos populacionais específicos. O Brasil prepara-se para excluir 50% das
vagas das instituições federais da concorrência geral, destinando-as a
estudantes provenientes de escolas públicas.
O texto votado no Senado, ilustração acabada dos costumes políticos em
voga, concilia pelo método da justaposição as demandas dos mais diversos
"amigos do povo". Metade das vagas reservadas contemplará jovens
oriundos de famílias com renda não superior a 1,5 salário mínimo. Todas elas,
em cada "curso e turno", serão repartidas em subcotas raciais
destinadas a "negros, pardos e indígenas" nas proporções de tais
grupos na população do Estado em que se situa a instituição. Uma extravagância
final abole os exames gerais, determinando que os cotistas sejam selecionados
pelas notas obtidas em suas escolas de origem.
Gueto é o nome do jogo. Só haverá uma espécie viciada de concorrência
entre "iguais": alunos de escolas públicas concorrem entre si, mas
não com alunos de escolas privadas. Jovens miseráveis não concorrem com jovens
pobres. "Pardos" competem entre si, mas não com "brancos"
ou "negros", detentores de suas próprias cotas. Cada um no seu
quadrado: todos têm um lugar ao sol - mas o sol que ilumina uns não é o mesmo
que ilumina os outros. No fim do arco-íris, cada cotista portará o rótulo de
representante de uma minoria oficialmente reconhecida. O "branco" se
sentará ao lado do "negro", do "pardo", do
"indígena", do "pobre" e do "miserável" - e
todos, separados, mas iguais, agradecerão a seus padrinhos políticos pela vaga
concedida.
Nice Lobão é apenas um detalhe significativo. O projeto reflete um
consenso de Estado. Nasce no Congresso, tem o apoio da presidente, que prometeu
sancioná-lo, e a bênção prévia do STF, que atirou o princípio da igualdade dos
cidadãos à lixeira das formalidades jurídicas ao declarar a constitucionalidade
das cotas raciais. O Estado brasileiro desembaraça-se do princípio do mérito
alegando que se trata de critério "elitista". Na verdade, é o avesso
disso: a meritocracia difundiu-se no pensamento ocidental com as Luzes, junto
com o princípio da igualdade perante a lei, na hora do combate aos critérios
aristocráticos de promoção escolar e preenchimento de cargos no serviço
público. Naquele contexto, para suprimir a influência do "sangue
azul" na constituição das burocracias públicas, nasceram os concursos
baseados em exames.
O princípio do mérito não produz, magicamente, a igualdade de
oportunidades, mas registra com eficiência as injustiças sociais. Os
vestibulares e o Enem revelam as intoleráveis disparidades de qualidade entre
escolas privadas e públicas. Entretanto, revelam também que em todos os Estados
existem escolas públicas com desempenho similar ao das melhores escolas particulares.
A constatação deveria ser o ponto de partida para uma revolução no ensino
público destinada a equalizar por cima a qualidade da educação oferecida aos
jovens. No lugar disso, a lei de cotas oculta o fracasso do ensino público,
evitando o cotejo entre escolas públicas e privadas. Os "amigos do
povo" asseguram, pela abolição do mérito, a continuidade do apartheid
educacional brasileiro.
O ingresso em massa de cotistas terá impacto devastador nas
universidades federais. Por motivos óbvios, elas estão condenadas a espelhar o
nível médio das escolas públicas que fornecerão 50% de seus graduandos. Hoje
quase todos os reitores das federais funcionam como meros despachantes do poder
de turno. Mesmo assim, eles alertam para os efeitos do populismo sem freios. O Brasil
queima a meta da excelência na pira de sacrifício dos interesses de curto prazo
de sua elite política. Os "amigos do povo" convertem o ensino público
superior em ferramenta de mistificação ideológica e fabricação de clientelas
eleitorais.
No STF, durante o julgamento das cotas raciais, Marco Aurélio Mello
pediu a "generalização" das políticas de cotas. A "lei
Lobão" atende ao apelo do juiz que, como seus pares, fulminou o artigo 208
da Constituição, no qual está consagrado o princípio do mérito para o acesso ao
ensino superior. Mas a virtual abolição do princípio surtirá efeitos em cascata
na esfera do funcionalismo público, que interessa crucialmente à elite
política. As próximas leis de cotas tratarão de desmoralizar os concursos
públicos nos processos de contratação, nos diversos níveis de governo.
A meritocracia é o alicerce que sustenta as modernas burocracias
estatais, traçando limites ao aparelhamento político da administração pública.
Escandalosamente, a elite política brasileira reserva para si a prerrogativa de
nomear os ocupantes de centenas de milhares de cargos de livre provimento, uma
fonte inigualável de poder e corrupção. A ofensiva dos "amigos do
povo" contra o princípio do mérito tem a finalidade indireta, mas
estratégica, de perpetuar e estender o controle dos partidos sobre a
administração pública.
O país do patrimonialismo, do clientelismo, dos amigos e dos favores
moderniza sua própria tradição ao se desvencilhar de um efêmero flerte com o
princípio do mérito. Nice Lobão é um retrato fiel da elite política remodelada
pelo lulismo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário