[pensamento de] esquerda consiste
em julgar toda forma de sucesso humano a partir do fracasso dos outros. Com
base nisso, engendrar um plano de salvação para os mais fracos. (..) Eles
sempre oferecem uma causa justificável e uma vítima a ser resgatada. No século
XIX, a esquerda pretendia salvar os proletários. Nos anos 60, a juventude.
Depois, vieram as mulheres e, por último, os animais. Agora, eles pretendem
resgatar o planeta (..)
Como impor a mesma
moeda, o mesmo sistema e o mesmo modo de vida ao alemão trabalhador, cumpridor
das leis, respeitador da hierarquia, e ao grego fanfarrão e avesso às normas? Arrisco-me a dizer que a União Europeia é um
fracasso porque contém as insanidades institucionais do velho experimento
comunista
Por Roger Scruton (Publicada na edição impressa de VEJA de 21 de setembro de 2011)
O filósofo inglês diz que os quebra-quebras em Londres são obra de uma
juventude dependente e ressentida, criada pelo excesso de políticas estatais
assistencialistas
O filósofo inglês Roger
Scruton, de 67 anos, é presença constante nos debates realizados em seu país
quando é preciso ter na mesa um pensador independente e corajoso. Autor de 42
livros de ensaios, Scruton é uma pedra no sapato da ideologia politicamente correta
que predomina bovinamente na Europa.
Multiculturalismo?
Um desastre. A arte moderna? Detestável, e por aí vai o filósofo, que lecionou
nas universidades de Oxford, na Inglaterra, e Boston, nos Estados Unidos, e
atraiu para si o cognome de “defensor do indefensável”. Um dos fundadores do
Conservative Action Group, que ajudou a eleger a primeira-ministra Margaret
Thatcher[1977-1990], Scruton, autor de três dezenas de
obras, o mais recente dos quais, As Vantagens do Pessimismo, ainda sem previsão de lançamento no Brasil.
Um bom número de intelectuais ingleses interpretou a onda de vandalismo
em Londres e arredores como atos de jovens niilistas sem maiores repercussões.
O senhor concorda?
Acho essa explicação muito
simplista. Muitos desses desordeiros são realmente niilistas, que não acreditam
em nada e não se identificam com nenhuma instituição, crença ou tradição capaz
de fazer florescer em cada um deles o senso de responsabilidade e o respeito
pelo próximo. Alguns não têm emprego. Mas, na maior parte dos casos, eles
agiram por uma escolha deliberada.
Desemprego e niilismo sempre
existiram. Ninguém mencionou como uma das causas da baderna a deformação
causada nesses jovens pelas políticas do estado do bem-estar social. Diversos
estudos mostram com clareza a vinculação desses programas assistencialistas com
a proliferação de uma classe baixa ressentida, raivosa e dependente. Não quero
ser leviano e culpar apenas as políticas socialistas pelos tumultos. As pessoas
promovem arruaças por inúmeras razões. Entre os jovens, a revolta é uma
condição inerente, um padrão de comportamento.
Mas é preciso um pouco mais de
honestidade intelectual para buscar uma resposta mais concreta sobre o que
ocorreu em Londres. Por debaixo do verniz civilizatório, todo homem tem dentro
de si um animal à espreita. Infelizmente, se esse verniz for arrancado, o
animal vai mostrar a sua cara. A promessa de concessão de direitos sem a
obrigatoriedade de deveres e de recompensas sem méritos foi o que arrancou o
verniz nessa recente eclosão de episódios de vandalismo na Inglaterra.
Os distúrbios em Londres e os protestos no Cairo, em Atenas, em Madri e
em Tel-Aviv são um mesmo “grito dos excluídos”?
Sou cético em relação à ideia
de que os protestos que eclodiram em diversos pontos do mundo têm a ver com
exclusão, com o suposto aumento no número de pobres ou com concentração de
renda. Os baderneiros de Londres são, pelos padrões do século XVIII, ricos.
Desculpe-me, mas é resultado de
exclusão depredar uma cidade porque você tem só um carro, um apartamento
pequeno pelo qual não paga aluguel, recebe mesada do governo sem ter de fazer
nada para embolsá-la, compra três cervejas, mas gostaria de beber quatro, e
acha que ter apenas um televisor em casa é pouco? Não.
Ver exclusão nesses episódios
só faz sentido na cabeça de um professor de sociologia. É um absurdo também
comparar os tumultos de Londres com os eventos no Oriente Médio. Os jovens do
Egito exigiam algo do governo. Os jovens ingleses não dão a mínima para o
governo ou para as instituições.
No seu último livro, o senhor afirma que o otimismo é mais nocivo para
os indivíduos e para as nações do que o pessimismo. Como o otimismo pode ser
tão prejudicial?
Não falo do otimismo como
virtude, nem da esperança ou da fé, que servem para a elevação espiritual do
indivíduo e fomentam inovações e avanços. O otimismo prejudicial é o desmedido
ou, como disse o filósofo Arthur Schopenhauer, o otimismo mal-intencionado,
inescrupuloso. É o tipo de pensamento que está por trás de todas as tentativas
radicais de transformar o mundo, de superar as dificuldades e perturbações
típicas da humanidade por meio de um ajuste em larga escala, de uma solução
ingênua e utópica, como o comunismo, o fascismo e o nazismo.
Otimismo e utopia em excesso
geralmente acabam em nada, ou, pior, dão em totalitarismo. Lenin, Hitler e Mao
pertencem a essa categoria de otimistas inescrupulosos. A crise financeira e
institucional da Europa é a mais recente consequência do pensamento utópico e
do otimismo exagerado que são a base, o fundamento e a força propulsora da
União Europeia.
Pode-se reduzir a União Europeia apenas a uma manifestação de otimismo
utópico e insensato?
É uma ilusão, se não uma
loucura, acreditar que os alemães e os gregos podem pertencer à mesma
organização e se adequar às mesmas normas financeiras. Como impor a mesma
moeda, o mesmo sistema e o mesmo modo de vida ao alemão trabalhador, cumpridor
das leis, respeitador da hierarquia, e ao grego fanfarrão e avesso às normas?
Arrisco-me
a dizer que a União Europeia é um fracasso porque contém as insanidades
institucionais do velho experimento comunista. Assim como o comunismo
soviético, a União Europeia é um objetivo inalcançável, pois foi escolhido pela
sua pureza, que exige que todas as diferenças sejam atenuadas, os conflitos
superados, e no qual a humanidade deve se encontrar como que sob uma unidade
metafísica que jamais pode ser questionada ou posta à prova.
Apesar do colapso do comunismo e de outras tragédias semelhantes, as
pessoas continuam caindo por causas utópicas. Por quê?
O pensamento utópico sobrevive
porque não se trata de uma ideia de fato, mas de um substituto de uma ideia,
algo que serve de alívio para a difícil – e geralmente depressiva – tarefa de
ver as coisas como elas são realmente. É uma forma de vício, um curto-circuito
que afasta os indivíduos da razão e do questionamento racional e efetivo.
O pensamento utópico nos remete
diretamente para um objetivo, passando por cima da viabilidade do projeto. É
fácil digeri-lo e se embeber do seu otimismo mal-intencionado e sem fundamento.
O problema vem depois, quando a utopia termina em fiasco.
O ambientalismo é a grande utopia moderna?
Há dois tipos de ambientalista.
O primeiro sonha com soluções amplas, inalcançáveis, cujo objetivo real não é
promover o bem de ninguém nem do planeta, mas sim inflar o ego de seus
criadores. O segundo é realista, segue o caminho conservador e reconhece que o
que deve ser feito em prol do ambiente é difícil, atinge um número limitado de
pessoas ou de lugares e exige sacrifícios reais.
O problema é que a questão
ambiental foi parar nas mãos erradas. A esquerda transformou a proteção do meio
ambiente em uma causa, em um movimento que necessita de intervenções estatais,
em um assunto no qual há culpados e vítimas. No caso, os culpados são os
capitalistas e a vítima é o planeta. A esquerda adora o culto à vítima.
Que tradição é essa?
É uma tradição esquerdista, que
vem desde o século XIX e de Karl Marx, em particular. Consiste em julgar toda
forma de sucesso humano a partir do fracasso dos outros. Com base nisso,
engendrar um plano de salvação para os mais fracos.
Esse é um dos motivos pelos
quais os movimentos de esquerda continuam a fazer sucesso. Eles sempre oferecem
uma causa justificável e uma vítima a ser resgatada. No século XIX, a esquerda
pretendia salvar os proletários. Nos anos 60, a juventude. Depois, vieram as
mulheres e, por último, os animais. Agora, eles pretendem resgatar o planeta, a
maior de todas as vítimas que encontraram para justificar seus atos.
Ora, as questões ambientais são
reais e não podem ser enclausuradas na ideologia de esquerda. Temos o dever de
cuidar do ambiente e sacrificar os nossos desejos para garantir um lar, um
futuro para as próximas gerações. O problema é radicalizar a questão no bojo de
um movimento com conotações até religiosas. Preservar o ambiente virou uma
questão de fé. Está na hora de acabar com o pensamento de que a sociedade é um
jogo de soma zero, segundo o qual se um ganhar o outro tem de perder. Com
práticas ambientais sustentáveis, todos ganham.
Onde mais se revela essa ideia da “soma zero” das relações humanas?
Ela é o refrão central dos
socialistas, é o principal inimigo da caridade, da gentileza e da justiça. Na
política internacional, essa forma de pensar se expressa com toda a clareza no
antiamericanismo.
Os Estados Unidos, a maior economia
do mundo, o maior poderio militar, se tornaram o alvo principal dos
ressentidos, dos que se consideram fracassados por causa do sucesso alheio. O
ataque às Torres Gêmeas, há dez anos, é uma mostra do que o ressentimento
coletivo estimulado pela falácia da soma zero é capaz de causar.
Por que o senhor critica tanto a política de imigração dos países
europeus?
A imigração em massa não é um
assunto fácil. Basta escrevermos a palavra imigração para sermos mal
interpretados. Não sou contra a imigração. Minha opinião é que os imigrantes só
se adaptarão a um país se forem incorporados legal e culturalmente à nação que
os recebe.
Para que isso dê certo, os
forasteiros precisam superar o sentimento de distância que eles possuem em
relação ao novo país. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos, no passado. Os
países europeus fazem justamente o oposto ao incentivar o multiculturalismo:
encorajam as comunidades de estrangeiros a manter sua cultura e identidade, a
não se misturar.
Dessa forma, os imigrantes
passam a se definir como diferentes, afastados, excluídos da comunidade, o que
só faz crescer as tensões entre os grupos étnicos. Os recentes tumultos em
Londres devem-se, em parte, ao multiculturalismo.
Análises como essa sua visão têm sido atacadas por, potencialmente,
fomentar atentados como o que traumatizou a Noruega, em julho.
Isso é justo? Alguém culpa
Jean-Paul Sartre pelo genocida cambojano Pol Pot? Karl Marx deve ser culpado
pelos assassinatos de Stalin? Os socialistas alemães são responsáveis pelos
atos da organização terrorista Facção do Exército Vermelho?
Extremistas como o norueguês
Anders Breivik podem agir em parte motivados por ideias, sim, da mesma forma
que eu ou qualquer outra pessoa. Sempre que um lunático de extrema direita
pratica um crime terrível, os intelectuais de esquerda se unem para, em coro,
dizer: é culpa do pensamento conservador. Eles se esquecem dos crimes muito
mais graves que foram cometidos em nome dos ideais de esquerda.
Indivíduos como Breivik cometem
crimes não por causa das ideias que eles comungam com outras pessoas, mas por
causa de algo que os afasta, isola e diferencia de outras pessoas. Eles matam
por total e absoluto desprezo por vidas inocentes.
O que é fazer parte de uma minoria no mundo acadêmico?
Eu acordei do meu delírio
socialista durante os tumultos de maio de 1968, em Paris. No meio da
destruição, das barricadas e das janelas quebradas, percebi que aqueles
estudantes estavam intoxicados pelo simples desejo de destruir coisas e ideias,
sem a mínima preocupação em colocar algo relevante no lugar. Foi difícil
aceitar que meu futuro era me tornar um pária intelectual em meio à maioria
esmagadora de esquerdistas.
Em todo o mundo, as
universidades têm uma declarada inclinação pela esquerda. É difícil explicar o
motivo dessa propensão esquerdista, algo que persiste desde o Iluminismo. Na
minha tentativa de desvendar esse mistério, cheguei à seguinte conclusão:
quando uma pessoa começa a pensar sobre as grandes questões que afligem o homem
e a sociedade, tende a aceitar as posições da esquerda, pois elas parecem
oferecer soluções. Ao pensar além, ao se aprofundar, a pessoa aprende a duvidar
e rejeita o argumento esquerdista. Nas universidades muita gente pensa, mas
poucas refletem profundamente.
O que é um conservador?
É alguém que considera a
liberdade um valor, um objetivo, mas não chama isso de um ideal. O conservador
reflete sobre coisas reais e sabe que a liberdade verdadeira é obtida sob leis
e regras, pois sem instituições não há liberdade, mas selvageria.
Nenhum comentário:
Postar um comentário