quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Caminhando com Ferreira Gullar

"Quando ser de esquerda dava cadeia, ninguém era. Agora que dá prêmio, todo mundo é"


Por João Pereira Coutinho


Viajo para Londres. Na mala, algumas revistas para ler nas duas horas de voo. Tiro a primeira. Folheio as páginas iniciais. Encontro Ferreira Gullar em entrevista à "Veja". O dia está ganho.

Sobre o poeta, não vale a pena dizer o óbvio: depois da morte do lusitano Mário Cesariny (1923-2006), Ferreira Gullar é o único poeta de língua portuguesa que merece a honraria do Nobel.
Embora, atendendo às anedotas recentes da academia sueca (Elfriede Jelinek, Herta Müller etc.), talvez seja mais correto dizer que é o Nobel que precisa do prestígio de Gullar.

Mas a entrevista é sobretudo uma lição de política só possível em alguém que, permanecendo à esquerda no que a esquerda tem de melhor (uma insubordinação instintiva perante abusos ou privilégios injustificáveis), aprendeu e refletiu com a experiência histórica.

"Quando ser de esquerda dava cadeia, ninguém era. Agora que dá prêmio, todo mundo é", diz o poeta. Eis o "espírito do tempo", feito de oportunismo e farsa ideológica.

Ferreira Gullar não alinha em farsas. O capitalismo tem páginas abomináveis de miséria e exploração, sobretudo nas incipientes sociedades industriais do século 19? Sem dúvida --e ler Charles Dickens é, nesse quesito, mais relevante do que ler Marx, que nunca pôs os pés numa fábrica e tinha Engels para sustentá-lo.

Mas o capitalismo, apesar de tudo, "é forte porque é instintivo", diz o poeta. Em apenas uma frase, Gullar resume o que Adam Smith escreveu em dois volumes, 250 anos atrás.

Existe nos seres humanos um desejo natural para "melhorarem a sua condição", escrevia o filósofo escocês. E essa melhoria material só se consegue quando o açougueiro, o cervejeiro e o padeiro perseguem o seu próprio interesse, negociando os seus produtos e procurando aumentar os seus lucros.

Fato: sem freios éticos ou legais, o capitalismo é destrutivo e autodestrutivo. Mas quando existem esses freios, e nenhum liberal clássico prescinde deles (Adam Smith, antes de escrever "A Riqueza das Nações", escreveu primeiro a sua "Teoria dos Sentimentos Morais", base ética de qualquer sociedade civilizada), não há outra forma, historicamente comprovada, de gerar riqueza.

Claro que, para um marxista puro e duro, o capitalista nunca gera riqueza; ele explora quem trabalha e vive do suor alheio, de preferência fumando o seu charuto e brandindo o chicote. Raymond Aron, o mais incisivo crítico do marxismo que conheço, tem páginas notáveis onde desmonta essa dicotomia caricatural entre "capital" e "trabalho".

Ferreira Gullar prefere uma metáfora: "O empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas". E acrescenta, para os lentos de raciocínio: "A visão de que só um lado produz riqueza e o outro só explora é radical, sectária, primária".

Finalmente, as lições da história: Ferreira Gullar não se limita a relembrar os crimes do "socialismo real", hoje uma evidência para qualquer pessoa com dois neurônios em funcionamento.

Ele deixa uma pergunta devastadora: quantos dos defensores de Cuba estariam dispostos a viver lá? Sim, a viver enjaulados em uma ilha de onde é difícil sair, onde publicar um livro implica uma permissão governamental --e onde a igualdade na miséria é a única igualdade que existe e resiste?

É um bom princípio de responsabilidade política: só defendermos regimes sob os quais estamos dispostos a viver. Todo resto é pose pornográfica.

Infelizmente, não sobra espaço para as meditações estéticas propriamente ditas. Mas Ferreira Gullar, relembrando a morte de um filho, deixa esta definição (meta) poética primorosa: "Os mortos veem o mundo pelos olhos dos vivos".

Nem mais: escrever é continuar essa revelação interminável do ainda não-dito, do ainda não-experimentado, como se o poeta fosse o elo presente de uma corrente interminável.

Ou, como o próprio Gullar escreveu nos seus velhinhos "Poemas Portugueses", que praticamente aprendi de cor: "Caminhos não há/ Mas os pés na grama/ os inventarão/ Aqui se inicia/ uma viagem clara/ para a encantação".

Caminhar com Ferreira Gullar tem sido, hoje e sempre, uma lição e um privilégio.

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