terça-feira, 22 de maio de 2012

É possível obrigar um pai a ser pai?

A “filha abandonada” encarna a época dos adultos infantilizados – e dos cidadãos-filhos diante do Estado-pai

ELIANE BRUM (jornalista, escritora e documentarista)

Na semana passada, o Superior Tribunal de Justiça tomou uma decisão inédita no Brasil: determinou a um pai o pagamento de R$ 200 mil por “abandono afetivo”. Antonio Carlos Jamas dos Santos, empresário do ramo de combustíveis de Sorocaba, no interior de São Paulo, terá de pagar à sua filha, Luciane Nunes de Oliveira Souza, professora da rede municipal da mesma cidade, por sua ausência como pai. Na sentença, manchete da maioria dos jornais brasileiros de quinta-feira (3/5), a frase lapidar da ministra-relatora do caso, Nancy Andrigui: “Amar é faculdade, cuidar é dever”. Nos dias posteriores, Luciane deu entrevistas, em que chorou muito pelo abandono, assim como comemorou a vitória dos filhos abandonados do Brasil, representada pelo seu triunfo no tribunal. Minha pergunta: é possível – e desejável – que um pai seja condenado por falta de afeto?

Apesar da frase de efeito da ministra, é disso que se trata. Este pai, agora condenado, pagou uma pensão para a filha até os 18 anos. Portanto, deu as condições materiais para o seu sustento, o que é garantido pela legislação brasileira há muito e não está em discussão. Se o valor era abaixo das necessidades concretas da filha e abaixo das possibilidades concretas do pai, esta é uma falha de quem arbitrou a pensão – uma falha da Justiça, portanto.

Estou rodeada de pessoas que acreditam que seus pais não lhes deram o afeto que mereciam. Acho mesmo que boa parte das pessoas acha que seus pais são deficitários no quesito afeto e no quesito presença. Da mesma maneira que, se fôssemos perguntar aos pais – e também às mães –, boa parte deles compartilha da convicção de que são abandonados pelos filhos. Mas esta, decididamente, não é a hora dos pais. Os filhos reinam absolutos nesse momento histórico, com o apoio irrestrito do Estado.

Se os pais derem uma palmada em uma criança, logo estarão cometendo uma infração. O Congresso prepara-se para determinar que palmadas são inaceitáveis como método educativo. Se a conclusão for a de que os pais não amaram bem, a Justiça pode obrigar os pais a indenizar os filhos com o valor equivalente ao de um apartamento. Em breve, suponho, teremos mais novidades na vigilância dos pais pelo Estado. E não estou sendo irônica. É para esse mundo que temos caminhado. E é preciso perceber que temos dado sempre um passo além. Em minha opinião, além do bom senso.

Se um pai espanca um filho ou qualquer pessoa espanca uma criança, já existe lei para punir esse ato bárbaro. Mas, não, em vez de aprimorar as ações de prevenção e tornar mais eficiente a repressão, considera-se necessário criar mais uma lei e punir também a palmada. Se um pai não garante as condições materiais para assegurar educação, alimentação e casa para um filho, também já existe lei para obrigá-lo a cumprir o seu dever. Mas agora é preciso ir mais adiante, é necessário punir também a falta de afeto.

Coloco essas duas questões – a da “palmada” e a do “abandono afetivo” – no mesmo texto, porque, ainda que venham de instâncias diferentes do Estado, elas me parecem emblemáticas dos novos tempos que vivemos. E tenho dúvidas se refletimos o suficiente sobre o que estamos fazendo ao achar aceitável que o Estado entre na casa das pessoas e julgue o subjetivo. Tudo isso vem embalado “em nome do bem”. Mas me parece que “o bem”, assim como “as boas intenções”, tem trilhado caminhos estranhos.

Como um juiz pode determinar o que é “abandono afetivo” em uma relação complexa como a de pais e filhos? E por que o Estado deveria fazer isso? E por que deveríamos achar legítimo que o faça?

Não tenho dúvidas de que Luciane sofreu. E desconfio que seu pai também pode ter sofrido. E gostaria que o sofrimento de ambos jamais tivesse se tornado público, porque acho que isso deveria seguir sendo tema do privado – longe da mão do Estado e longe dos holofotes. Mas, como abri a porta do meu apartamento na semana passada e me deparei com o rosto de Luciane no jornal, é preciso pensar sobre isso.

As imagens de Luciane, com sua expressão sofrida e chorosa, mesmo quando sorridente, provocam-me aflição. Porque é uma mulher de 38 anos, mãe e professora, dizendo coisas como: “Desde que eu nasci, meu pai nunca me quis!”. Eu facilmente poderia ver essa frase na boca de uma adolescente falando com as amigas num bar ou no pátio da escola. Mas, em uma mulher adulta, essa queixa – e uma queixa pública, com acolhimento público – me causa estranheza. Como se estivesse fora de lugar, deslocada no tempo de uma vida.

Luciane se coloca numa posição infantilizada. E me parece que ela encarna a posição infantilizada na qual todos nós nos colocamos ao permitir que o Estado legisle e arbitre sobre como devemos amar ou como devemos educar um filho. Como se jamais nos tornássemos adultos, na medida em que precisamos de um Estado-pai para nos dizer o que fazer. Um Estado que cada vez mais se arma do direito de entrar dentro das nossas casas e determinar como devemos viver.

São tempos curiosos. E o mais curioso é que a tese do “abandono afetivo” seja acolhida na mesma época em que a família já não é mais aquela. Nem sempre o pai biológico é aquele que assume a função paterna. Ou a mãe biológica é aquela que desempenha a função materna. As combinações, hoje, são as mais variadas. E nem sempre o pai que paga as contas é o pai que busca na escola, coloca a criança no colo, conta histórias antes de dormir, repreende um deslize ou conversa sobre a iniciação sexual da filha ou do filho. Pode ser – e pode não ser.

A função paterna pode ser assumida pelo padrasto, por um tio, por um irmão mais velho, pelo avô ou mesmo por uma mulher, em um casamento gay. E o mesmo acontece com a função materna. Para ser pai ou mãe, não basta gerar uma criança, é preciso “adotá-la”. E isso vale também para os pais biológicos. E nem todos conseguem ou desejam fazê-lo. Quem desempenha a função paterna ou a função materna é aquele que gerou uma criança e “adotou-a”. Ou aquele que adotou uma criança e “adotou-a”. São dois atos – e não um. E o segundo é mais difícil, demorado e cheio de percalços.

Que o pai biológico de Luciane se responsabilize ou seja responsabilizado pelo sustento material da filha ninguém discute. Mas não é possível obrigá-lo a ocupar a função paterna no sentido mais amplo e subjetivo. Não há como obrigar ninguém a ser pai ou mãe no sentido pleno. Se o Superior Tribunal de Justiça acredita ter esse poder e, para exercê-lo, bastaria obrigar um pai a pagar um valor em dinheiro, está completamente equivocado.

Todos nós temos de lidar com o que consideramos ausência ou falta de afeto, em várias medidas ao longo da vida. Faz parte da complexidade das relações humanas. E faz parte do humano do nosso tempo acreditar que nunca é amado o suficiente – não só pelos pais, mas pelos filhos, pelos namorados, pelos maridos e pelas esposas, pelos amigos, pelo mundo inteiro.

Temos de lidar com as faltas inerentes a qualquer vida da melhor forma que conseguirmos – e lidar com isso significa crescer. E crescer significa parar de choramingar e seguir adiante. Acho grave que a Justiça considere legítimo cristalizar essa mulher adulta no lugar de vítima e de menina abandonada. E congelar esse homem no lugar de pai ausente e de algoz. A vida é mais complicada do que isso. E um juiz tem o dever de compreender isso. As implicações públicas da decisão do STJ, na minha opinião uma decisão desvairada, ecoarão na vida de todos nós.

Em entrevista à rádio CBN, a ministra Nancy Andrighi afirmou que a decisão do STJ “analisa os sentimentos das pessoas”. Se analisa, ministra, errou. Não cabe ao STJ ou qualquer tribunal analisar “sentimentos” e desferir punições pela ausência ou excesso de “sentimentos”. Isso colocaria os juízes em lugar bastante indevido.

A ministra também disse: “Não se pode negar que tenha havido sofrimento, mágoa e tristeza, e que esses sentimentos ainda persistam, por ser considerada filha de segunda classe". Alguém conhece uma vida ou mesmo uma relação entre pais e filhos que não tenha sofrimento, mágoa ou tristeza mútuas? Como é que uma juíza pode comprar a versão de filha de “segunda classe” de uma forma tão barata?

A ministra ainda disse mais: "Todo esse contexto resume-se apenas em uma palavra: a humanização da Justiça”. Pelo contrário, me parece que a decisão ignora justamente a complexidade e a ambivalência das relações humanas. E desumaniza, ao compensar afeto com dinheiro – o que também é mais um dado interessantíssimo da nossa época de relações monetarizadas.

Luciane, por sua vez, afirma que não sente “raiva ou mágoa” do pai. Só quer “justiça”. Se colocar o pai no banco dos réus e dizer ao país inteiro que ele é um pai ausente, relatando suas desventuras nos mínimos detalhes, não é uma vingança monumental, eu não sei o que é. Mas que Luciane busque isso, podemos até compreender. Que um tribunal legitime a vingança é que é surpreendente. O que poderíamos estar nos perguntando, neste momento, é: como a gente faz para alertar um juiz por “abandono da razão”?

Na Folha de S. Paulo do último sábado (5/5), há duas fotos de Luciane: uma segurando um retrato dela quando bebê, no colo da mãe; a outra vestida de caipira na escola. São fotos comoventes e também são fotos escolhidas para comover – o que me faz ficar ainda mais aflita por ela. As duas fotos, assim como seu discurso, parecem dizer: “Pai, veja como sou ‘amável’”. Ou: “Brasil, veja como sou ‘amável’. Por que este homem mau não quis me amar?”. Parece que é isso que Luciane foi buscar na Justiça: a comprovação, pelo Estado, de que ela é ‘amável’, o pai é que falha. E continua, tristemente, tentando chamar a atenção do pai.

O problema é que dificilmente Luciane conseguirá seguir adiante, paralisada como parece estar no mesmo lugar simbólico. E mais difícil será agora que o tribunal a acompanha na ilusão de que é possível obrigar um pai a ser pai. Ou obrigar um pai a amá-la. E não há dúvida de que ela sofre muito com tudo isso. Tornar-se adulto, porém, é descobrir que o baralho nunca estará completo, que nem mesmo existe um baralho completo. Temos de jogar com as cartas que temos. E tentar recuperar cartas que jamais existiram, como se elas estivessem apenas perdidas, não nos ajuda a viver melhor. Apenas nos congela em um lugar infantil.

É um caso fascinante pelo que revela sobre o nosso tempo. E há bem mais ainda para se ver nele. Por enquanto, ainda queria lembrar que, às vezes, o melhor que pode acontecer a um filho é que certos pais e mães fiquem bem longe.

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