Sei que a expressão fascista pode parecer extremamente forte, nos dias que correm, para designar um país, mas é o que me veio à mente, após acumular, mentalmente, dezenas e dezenas de exemplos banais, corriqueiros, ordinários, redundantes, enfim, triviais, que confirmam o que afirmo no título deste texto. Minhas observações, não preciso estender-me a respeito, são retiradas do que leio na imprensa diária, nas matérias de jornais internacionais, em blogs de formadores de opinião, e também, por que não dizê-lo?, em boletins partidários e de grupos políticos, enfim, um pouco de tudo o que leio continuamente, regularmente, recorrentemente, todos os dias.
Sei também que os leitores podem achar que estou exagerando, já que, para a maior parte das pessoas, a expressão “fascista” vem sempre associada à imagem dos camisas negras, ou milícias armadas, desfilando – a passo de ganso ou em qualquer outro estilo – sobre fundo de cenários cinzentos, dominados por um ditador exaltado, fazendo discursos de ódio e incitando a massa do povo contra um inimigo qualquer. Mas essa é uma vinculação historicamente datada, que enfatiza mais os movimentos reais que existiram na Europa do entre-guerras (e por imitação em outras partes do mundo também), do que a essência do “ser fascista”, que está presente cada vez que alguns dos elementos abaixo domina o cenário público de um país e penetra nas consciências das pessoas, sem que elas tenham sequer consciência de que estão vivendo – que sabe até aceitando, maquinalmente – num país perfeitamente fascista, em sua essência.
Essas imagens estereotipadas de um regime fascista correspondem apenas à sua superfície, ou embalagem externa, atualmente um tanto ridículas, sobretudo depois que Charles Chaplin imortalizou a figura do ditador ridículo em seu filme explicitamente vinculado a dois exemplos do gênero, mas é claro que características externas não esgotam a essência do que é ser fascista. Explico as razões de minha adesão a essa expressão, para que meu título tenha mais consistência empírica e venha ilustrado por manifestações concretas da realidade que vivemos, atualmente, em países talvez conhecidos dos leitores. Vejamos alguns fatos, não opiniões.
Em qual país, senão num país fascista, o chefe de um dos poderes constitucionais tenta subordinar, dominar, emascular, castrar ou controlar os demais poderes, usando para isso de todos os golpes baixos de que é capaz, inclusive os serviços de inteligência, a sua “polícia política”, os seus esbirros partidárias, mediante compra de consciências e de vontades, por meio da chantagem, da corrupção, das insinuações diretas, da conquista por vantagens materiais ou intimidação pura e simples?
Em que país se observa uma tal concentração de poder, pela desmesura e apropriação de recursos, monopolizados por quem controla as alavancas de extração de recursos e de distribuição seletiva e arbitrária desses recursos? Qual o país no qual o Estado central consegue controlar frações importantes da riqueza nacional, sem que a massa dos cidadãos, e sequer seus representantes eleitos, possam controlar devidamente, e na mais perfeita transparência, a coleta, o tratamento e a distribuição (com alguns descontos pelo caminho, está claro) desses recursos? Esse país só pode ser um país perfeitamente fascista, ainda que seus cidadãos disso não se apercebam.
Em que país o Estado central concentra mais e mais poderes e recursos, fazendo com que indivíduos privados, em seu papel de produtores ou de consumidores, sejam convertidos em dependentes obrigatórios desse Estado centralizador e monopolista? Qual o país que coloca na lista de pagamentos do Estado, ao mesmo tempo, o mais miserável dos excluídos e o mais ricos dos seus milionários? Só pode ser um país fascista.
Qual o país no qual o mesmo chefe, ungido à condição de nosso guia, líder genial dos povos, intérprete da vontade nacional, se pretende iniciador de tudo de positivo que existe – segundo lista que ele mesmo decretou como exclusiva de sua vontade – e passa o tempo fazendo autoelogios e propaganda de si mesmo? Em qual país a máquina pública é colocada a serviço do egocentrismo autista do chefe supremo, e gasta rios de dinheiro fazendo propaganda enganosa sobre suas virtudes inigualáveis e suas realizações inéditas? Tem de ser num país fascista.
Em qual país os órgãos de controle fiscal e econômico têm todo o poder e arbítrio para invadir sua privacidade, decretar o que é ou não válido em suas contas privadas, se permitir presumir intenções ou ações passíveis de punição administrativa, pelo simples fato que esse órgão pode decretar, ao seu bel prazer, o que os indivíduos podem ou não podem fazer com seu patrimônio, renda ou ganhos. Onde mais esses mesmos órgãos, mesmo quando pensam “fazer o bem” aos empresários e trabalhadores, “decretando” um favor qualquer no plano regulatório ou tributário, impõem um tal número de normas e regulamentos tão complicados, sujeito a uma burocracia kafkiana, que acaba tornando aquele favor um inferno adicional, digno do mesmo escritor mas jamais por ele descrito em detalhes? Só pode ser num país basicamente fascista, no direito e nas práticas.
Em qual país, um outro órgão supostamente constituído para a defesa da saúde pública, impede farmácias de vender chiclete e impede cidadãos de alcançar eles mesmos uma simples cartela de aspirina nas estantes das mesmas farmácias? Isso é fascismo puro.
Como chamar um país que pratica racismo oficial, que pretende dividir os cidadãos entre uma minoria dita desprotegida, e todos os demais cidadãos, baseando-se para isso apenas na aparência externa, e que recorre para dirimir casos duvidosos a tribunais raciais? Qual o país no qual militantes da mesma causa racial, divisionista, segregadora, ilegal, pretende tornar obrigatórias cotas raciais em todas as esferas da vida pública, e quer ainda impor os mesmos critérios sobre empresas e instituições privadas? Isso é fascismo no mais alto grau de degeneração mental.
Qual o país no qual o Estado se torna tão onipotente e avassalador que, desde os mais simples cidadãos até os mais ricos empresários, todos se sentem obrigados, compelidos, ou até mesmo o fazem inconscientemente, a recorrer ao Estado como o nec plus ultra da vida social, como o Deus ex machina de todas as soluções possíveis aos problemas e dilemas dessa sociedade, como se não houvesse outras forças na sociedade do que a do Estado que tudo pode, tudo pensa, tudo provê, tudo supervisiona, em tudo interfere, mesmo nas esferas mais recônditas da vida privada, como a educação dos filhos, as opções sexuais das pessoas, o que elas podem ver ou não na televisão, o que elas devem estudar nas escolas, enfim, tudo o que perpassa a vida de cada um, da concepção até depois de morto e enterrado? Já estamos aqui no fascismo total...
Em que tipo de país, um partido hegemônico pretende controlar a imprensa, determinar como devem ser organizados os meios de comunicação, escolhe quem subsidiar nas artes e na cultura, repassa dinheiro para os amigos do poder, escolhe quem vai ser o vencedor de concorrências públicas (e que depois será obrigado a submeter-se à extorsão financeira do mesmo partido), enfim, corrompe todos os canais e instrumentos da administração pública e coloca militantes descerebrados nas engrenagens do poder, para justamente ter o controle de todas as instâncias da vida pública e privada dos cidadãos? Já estamos vivendo num sistema fascista, com estas características.
Que nome dar a um país que se deixou dominar por um sistema de tipo mafioso, e totalitário, em que a obediência total e absoluta é devida ao semideus que controla o sistema e tem a palavra final sobre o que pode e o que não pode nesse país? Em que tipo de país mandarins oficiais, marajás estatais, corporações organizadas de servidores ditos públicos, servem-se da máquina pública para fins privados, chantageiam os cidadãos que necessitam dos serviços públicos, submetem empresários que dependem desses serviços para produzir renda e riqueza e no qual, as mesmas pessoas acham que possuem um direito divino aos recursos públicos apenas porque estão no Estado? Só pode ser um país fascista, isso é evidente.
Qual o país no qual os ditos servidores não precisam prestar contas à sociedade, têm direito à estabilidade imediata, se aposentam com inúmeros privilégios – que já tinham antes na vida ativa – em relação a equivalentes funcionais do setor privado, e ainda acham que prestam um grande favor à sociedade? Em qual país acadêmicos e trabalhadores ditos intelectuais acham que a sociedade lhes deve por direito pagar salários elevados sem que disso eles necessitem prestar contas, sem qualquer critério de produtividade ou de resultados, como se fossem marajás entronizados numa torre de marfim? Tem de ser um país de mentalidade e comportamentos fascistas, está claro.
E, finalmente, em qual país, senão num país fascista, todas essas características ainda despertam admiração e orgulho, adesão inconteste e louvores exagerados, como seu o chefe absoluto do Estado total fosse a vontade eterna consolidada na figura em questão? Não pode ser senão num país fascista.
O fascismo, antes de exibir atributos materiais de tal ou qual movimento ou partido político, e de se manifestar concretamente num regime determinado, historicamente existente, constitui, primordialmente, um “estado mental”, uma feitura especial da psicologia humana que corresponde àquilo que alguns psicanalistas, psicólogos ou sociólogos chamariam de “personalidade autoritária”. O fascismo, antes de ser de direita, de esquerda, ou de qualquer outra corrente determinada do pensamento político dos últimos dois ou três séculos, emerge de pulsões e comportamentos perfeitamente autoritários, e mesmo totalitários, implicando numa vontade de dominação que parece resultar de algum desvio de personalidade.
Não se trata de um fenômeno ou processo puramente individual, mas deriva de tendências psíquicas e mentais profundamente entranhadas no comportamento individual e coletivo de milhares, talvez milhões de indivíduos que, ao longo dos séculos, e provavelmente no decurso da história humana conhecida, se alçaram a posições de mando e de dominação com base nessa vontade extrema de mandar e dominar outros seres humanos. O fascismo, em sua essência, é isso: uma pulsão inexcedível para o comando e a dominação absoluta, uma intolerância com respeito à liberdade humana e uma incapacidade de conviver democraticamente, segundo os parâmetros de uma sociedade normal, civilizada. O fascismo sempre é monopolizador, destruidor das vontades alheias, monopolizador dos instrumentos de controle social, arrebatador de todas as atenções e exigente de obediência total e absoluta.
Pois, ou eu muito me engano, ou tenho descoberto evidências empíricas, factuais, materiais, de mentalidades, comportamentos, atitudes e práticas fascistas aqui e ali, sempre que me volto para algum lugar, percorro sua imprensa, leio o que escrevem seus “intelequituais”, ouço as perorações de alguns de seus chefes políticos, e me espanto, de verdade, ao constatar como meus colegas e concidadãos não percebem que estão em face de um país fascista. A maior parte da massa não tem, obviamente, condições de fazer um julgamento elaborado a esse respeito. Mas eu me pergunto como acadêmicos, pessoas bem informadas, empresários que se sacrificam para viver dentro da lei (e pagam caro por isso), como todas essas pessoas não se dão conta que estão vivendo sob um regime de tipo fascista?
Este é mistério para mim...
Paulo Roberto de Almeida
Berlim, 2398: 31 Maio 2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário