Observando o discurso, me dei conta, mais uma vez, do quanto a estética da indignação pode esconder a falta de coragem. Coragem de reconhecer o que nós, latino-americanos, fizemos ou deixamos de fazer. Sobre nossa história triste de golpes de Estado, nosso populismo atrasado, nossa relutância em criar instituições inclusivas, que incentivem o espírito de inovação e a concorrência saudável entre as empresas.
Dias atrás, escutava o discurso do presidente
Mujica, do Uruguai, na ONU. O discurso fizera certo sucesso, e de fato é uma
boa peça de oratória. Mujica usa bem a imagem do viejo da província. Aquele que
nada mais tem a ganhar, que já deu de si. Que carrega o charme do pequeno país
em um mundo de gente grande.
Observando o discurso, me dei conta, mais uma vez,
do quanto a estética da indignação pode esconder a falta de coragem. Coragem de
reconhecer o que nós, latino-americanos, fizemos ou deixamos de fazer. Sobre
nossa história triste de golpes de Estado, nosso populismo atrasado, nossa
relutância em criar instituições inclusivas, que incentivem o espírito de
inovação e a concorrência saudável entre as empresas. Nosso investimento pífio
em infraestrutura, na “ciência”, que, segundo o presidente, deveria conduzir o
mundo. Nosso talento para ocupar os últimos lugares em qualquer ranking de
competitividade, com a honrosa exceção do Chile, cujo modelo de modernização é
hoje seguido, ao menos em parte, pelo Peru e pela Colômbia, país sul-americano
que mais avançou, na última década, no ranking do “doing business”, do Banco
Mundial.
Coragem para saber dos próprios erros, ao invés de
pôr a culpa no vizinho, em geral nosso vizinho preferido, mais ao norte.
Mujica, com razão, chama de inútil o bloqueio econômico a Cuba. Só não tem
coragem de falar em direitos humanos na Ilha. Pedir que libertem os “presos de
consciência”, promovam eleições livres, como soubemos fazer, aqui, mais ao
“Sul”, nos anos 80. Coragem para uma simples saudação a Guillermo Fariñas,
jornalista de oposição em Cuba, com suas 23 greves de fome, que acaba de
receber o Prêmio Sakharov de direitos humanos, concedido pelo Parlamento
Europeu. Não o culpo pela omissão. Ele cumpre um conhecido papel. O jogo é
falar mal dos “grandes”, cutucar os norte-americanos. Estes, sim, a tipificação
do erro, com sua Constituição de 226 anos, 35 universidades entre as 50
melhores do planeta, com seus vales do silício e uma das 10 economias mais
abertas do mundo.
O discurso de Mujica me fez lembrar do Wellington,
aluno da instituição de ensino em que trabalho. Bolsista do ProUni, 19 anos,
negro, talentoso, morador de São Gonçalo. Wellington quer aprender inglês.
Espanhol já estuda. Norte, Sul não lhe faz diferença. De certo modo, ele
transita do Norte ao Sul, todos os dias, no metrô carioca. Vai bem na
faculdade, pega a ponte aérea pra fazer um curso da Fundação Estudar, em São
Paulo, e imagino que acharia curioso, com o devido respeito, escutar Mujica
amaldiçoando o capitalismo e “el dios mercado”. Wellington anda querendo entrar
no mercado e, se acredita em alguma coisa, decididamente, é em “el dios
educación”.
Quando começou a faculdade, Wellington costumava
dormir em um banco de colégio, na sala dos professores. Teria do que se
lamentar, mas anda sem tempo. Está criando uma ONG. É impaciente, quer atuar
junto às comunidades. Quando lhe perguntei se não seria melhor focar nos
estudos, por agora, e depois atuar na área social, ele respondeu que não vai
esperar até ficar milionário para abrir a sua fundação.
Mujica diz que a “globalização não tem outra
condução se não interesse privado”. Esqueceu do bilhão de pes- soas privadas
que saiu da pobreza, mundo afora, nas duas últimas décadas. Talvez pense que as
estatísticas também são controladas pelas “grandes potências”. Talvez suponha
que 1 bilhão de pessoas não faça tanta diferença, já que há outro bilhão que
ainda precisa fazer o mesmo caminho. Talvez não pense nada disso. Foi só uma
frase no meio do discurso.
Wellington anda estudando sobre globalização, e a
palavra parece lhe soar bem aos ouvidos. Vê o mundo cada vez mais descolado da
geografia. O conhecimento está aí, circulando no mundo virtual, à disposição de
todo mundo. No final do ano, ele vai a Inglaterra fazer um curso. Depois, quer
ir para alguma universidade americana, em um intercâmbio. Mas o que ele quer
mesmo é voltar, contar tudo para seus amigos, em São Gonçalo. Ir de sala em
sala nas escolas da rede pública, olhar nos olhos de cada um e dizer que é
possível, que o Brasil é um país cheio de oportunidades, que tem o ProUni, o
Fies, o Sisu, as fundações, os intercâmbios. Que é só não desistir, não perder
tempo reclamando da vida.
Wellington senta na frente da minha mesa e me diz
que um dia vai ser presidente. Fala com convicção. Não duvido que vá mesmo.
Torço por ele. Sua história é a história de muita gente, não só do Brasil, mas
de um continente que se move rápido. Se um dia ele chegar lá, quem sabe também
fará um discurso nas Nações Unidas. Não sei o que ele dirá. Intuo que não
haverá amargura em suas palavras. Quem sabe, apenas se lembrará de tudo que
passou, sugerirá que cada um assuma suas responsabilidades, e dirá coisas
amenas sobre o futuro.
*DOUTOR EM
FILOSOFIA PELA UFRGS
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