O que está em questão é se o Brasil vai ou não se dirigir rumo à efetiva concretização de uma economia de mercado, da livre-iniciativa e da liberdade de escolha, ou se prefere continuar refém de sua tradição cartorial.
Por Denis Lerrer Rosenfield (estadão)
Perde-se, assim, a noção, absolutamente central, de que a
burocracia deveria ser um instrumento de atendimento a reivindicações e
demandas dos cidadãos, ajudando-os a dar conta de trâmites administrativos. Por
definição, estes deveriam ser simples, precisamente para simplificar a vida de
todos. Burocracia é meio, instrumento, não um fim em si mesma. Há aqui
envolvido todo um conceito de cidadania e de relação da sociedade com o Estado.
Não se trata de algo trivial, mera questão secundária, mas de algo que se situa
como central na vida de cada um. No melhor sentido da palavra, a questão é
política, por dizer respeito ao modo de relacionamento da pessoa com a coisa
pública.
A burocracia não deveria ser um instrumento alienante, que
afasta o indivíduo do cumprimento de suas obrigações, em boa parte dos casos
por absoluta falta de possibilidade de atendê-las. Não espanta, pois, que a informalidade
seja tão grande em nosso país. E isso se deve a que a formalização para muitos
é um verdadeiro calvário.
Nesse sentido, deve ser muito bem-vindo o projeto em curso da
Secretaria da Micro e Pequena Empresa, conduzida pelo ministro Guilherme Afif Domingos,
de levar para esse setor do empresariado todo um processo de simplificação de
sua vida. O Simples, sendo redundante, deveria ser simplificado! Normalmente,
dever-se-ia simplificar o complexo, mas essa não é a realidade para esses
empresários - e para o empresariado em geral. O aparente paradoxo não deixa de
ser significativo.
Observe-se, preliminarmente, que esse setor da economia nacional
abrange 7 milhões de unidades de negócio. Se a modernização administrativa for
introduzida para os pequenos e microempresários, liberando-os das pesadas
cargas burocráticas, poderia ser criado um emprego por empresa, impactando em
torno de 22% a taxa de emprego privado no País. Considerando, ademais, que o
emprego de uma pessoa envolve toda uma família, digamos, quatro pessoas, tal
iniciativa poderia atingir 28 milhões de pessoas, transformando a vida delas.
No estágio atual, vigora nesse setor um tipo de economia
mercantilista, com as pessoas tendo seus pés amarrados aos grilhões da
regulamentação burocrática. O avanço a ser feito consiste numa liberação rumo à
economia de mercado propriamente dita e, mais precisamente ainda, uma economia
de tipo digital.
O artigo 179 da Constituição federal já prevê a simplificação
para esse setor nos domínios administrativo, tributário, previdenciário e
creditício, garantindo-lhe tratamento diferenciado. Mas no momento de fazer
valer a Lei Magna com frequência depara com leis e regulamentações
administrativas que terminam invalidando ou criando sérios obstáculos ao que é
constitucionalmente garantido.
Há mesmo casos em que governos estaduais, para abastecerem seus
cofres, fazem normas complementares que impedem que valha o que uma lei federal
assegura, caso da substituição tributária. Ou seja, os benefícios do Simples
Nacional são praticamente anulados na esfera burocrática estadual. Há uma
espécie de lei aqui envolvida: a toda desburocratização sucede uma nova
burocratização, como se o ganho da livre-iniciativa devesse ser contrabalançado
com sua anulação. É a lei brasileira da gravitação burocrática!
Outra proposta que está sendo apresentada trata da efetiva
universalização do Simples, que passaria a valer não só para um tipo de
atividade, mas para todas as atividades econômicas, sendo limitado apenas pelo
porte das empresas. O setor de serviços, no caso, passaria também a ser
contemplado, fazendo justiça a todo um setor importante e dinâmico da economia
nacional. Se um empresário fatura até R$ 3,6 milhões, estaria imediatamente
incluído no Simples, pois o que conta é o tamanho.
Outro ponto igualmente relevante consiste na concessão de
crédito para bens de produção, poderoso instrumento de alavancagem de empresas.
Sem investimentos uma empresa não cresce nem pode modernizar-se, numa economia
mundial concorrencial e em constante mutação tecnológica. Acontece que, em
nosso país, o crédito é privilegiadamente direcionado para bens de consumo. Um
carro, uma televisão e um fogão, por exemplo, contam com condições de crédito
que se podem estender por vários anos. Agora, investir numa máquina, nova ou
usada, exige pagamento à vista. Não há economia que possa avançar, com força e
progressivamente, com esse tipo de contrassenso.
A abertura e o fechamento de empresas, fundamentais numa
economia dinâmica, não poderiam estar submetidos às vicissitudes de uma teia
burocrática que tudo captura e imobiliza. Se um empresário informal procura
formalizar-se, acaba caindo numa rede de cartórios e certidões, onerando sua
atividade e fazendo-o perder um tempo precioso. Surge, então, o medo da
formalização, sentimento contrário ao de um verdadeiro empreendedorismo.
Trâmites poderiam, por exemplo, ser centralizados na Junta Comercial, em
processo transparente e digital, válido para todos os órgãos públicos. O
cidadão seria contemplado e a economia nacional se beneficiaria.
O que está em questão é se o Brasil vai ou não se dirigir rumo à
efetiva concretização de uma economia de mercado, da livre-iniciativa e da
liberdade de escolha, ou se prefere continuar refém de sua tradição cartorial.
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