Além disso, também herdamos uma concentração centralizada e autoritária do Estado, uma pequena elite tutela todo o resto, essa grande geleia geral social instável e perigosa. (..)
O Brasil também tem uma outra característica: o messianismo, o salvador que entrará no poder e resolverá tudo.(..)
Se, por um lado, o Bolsa Família é um esforço muito bom de corrigir um passivo histórico de distribuição de renda, por outro é quase uma reprodução à esquerda de um clientelismo que os coronéis nordestinos faziam no passado, criando viveiros eleitorais.
“Nosso Brasil dos sonhos Ainda vai demorar”
Abandonar uma carreira de sucesso, depois dos 50 anos, para realizar um
sonho juvenil pode ser uma aventura arriscada, mas recompensadora. Laurentino
Gomes sabe bem disso. Depois de mais de duas décadas trabalhando na editora
Abril, o jornalista deixou o cargo de diretor superintendente para se consagrar
como escritor. Abordando a história brasileira de modo envolvente, seus livros
contrabalançam narrativas e análises históricas com momentos pitorescos de
figuras proeminentes do passado. Sua trilogia de livros 1808, 1822 e 1889 já
vendeu mais de 2 milhões de exemplares desde 2007. Os dois primeiros levaram o
título de Livro do Ano de Não Ficção no Prêmio Jabuti de 2008 e 2011, uma das
mais tradicionais láureas da literatura brasileira. Aos 58 anos, o escritor
paranaense, filho de agricultores, mantém suas pesquisas sobre o passado do país
em busca de referências para seu próximo livro. ZH conversou com Laurentino na
Feira do Livro de Canoas, que trouxe o autor ao Estado. Nesta entrevista,
analisa diferentes facetas do modo de ser do brasileiro sob uma perspectiva
histórica, aponta desafios da democracia e conta como foi a transição pessoal
de jornalista para escritor best-seller.
Como explicar a
identidade do brasileiro com base em nosso passado?
Especialmente nessas três datas com as quais trabalho em meus livros,
1808, 1822 e 1889, tenho observado muitas das características do Brasil de
hoje, como se fosse nosso DNA. Quando a corte portuguesa chegou ao país, em
1808, encontrou um oceano de pobreza, analfabetismo, escravidão, concentração
de riquezas, rivalidades locais... Os portugueses receberam a incumbência de
ocupar um território 91 vezes maior que a pequenina metrópole portuguesa e o
fizeram distribuindo grandes quantidades de terra a quem se dispunha a vir para
cá, mantendo a população na ignorância e importando mão de obra escrava. Gente
aventureira, exploração de matérias-primas e escravos: essa é a base
constitutiva do Brasil Colônia. É interessante observar que, após a chegada da
corte, um personagem como José Bonifácio de Andrada e Silva, faz uma observação
curiosa em carta a um amigo: “Amálgama muito difícil será a liga de metal tão
heterogêneo num corpo sólido e político”. Ele está dizendo: como vamos
construir um país com essa matéria-prima?
Bem diferente do que
se viu nos Estados Unidos, então colônia inglesa.
Quando D. João chegou aqui, não existia sociedade civil, como havia na
América inglesa, uma sociedade altamente alfabetizada, protestante, com senso
de participação comunitária, que rompe com a Inglaterra e constrói o Estado de
baixo para cima, em forma de democracia republicana. No Brasil, existia um
oceano de não cidadãos e uma pequena elite, de 10 a 15 mil pessoas, que chega
de Portugal e começa a construção do Estado de cima para baixo: abre os portos,
cria escolas de Medicina, imprensa régia, academia militar... Embaixo disso,
uma geleia geral social. O Brasil era um experimento muito instável, que
ameaçava fugir do controle. Diante do perigo de guerra civil que poderia
fragmentar o país e ameaçar o status quo ao armar os escravos, a elite
brasileira optou por um caminho conservador: manter a monarquia portuguesa, que
faz a independência. Ou seja, o Brasil rompe vínculos com Portugal, mas deixa a
ordem social inalterada: escravidão, analfabetismo, latifúndio. Tanto é que o
Brasil é o último país da América a abolir o tráfico negreiro e a escravidão.
Na época da independência, a América espanhola tinha 22 universidades, já a
primeira universidade brasileira é de 1912, 90 anos mais tarde. Com isso, o
Brasil vai acumulando passivos históricos.
Que passivos são esses?
Em primeiro lugar, a falta de prioridade com a educação e o
analfabetismo. Até meados do século 20, 50% da população era analfabeta. Em
segundo lugar, a grande concentração de propriedade, uma coisa que até hoje se
discute, embora acredite que não faça mais sentido fazer reforma agrária, tinha
que fazer no século 19. Um terceiro ponto é a criação de uma enorme faixa da
população de não cidadãos, que eram os escravos, gente que não contava nem nas
estatísticas. Além disso, também herdamos uma concentração centralizada e
autoritária do Estado, uma pequena elite tutela todo o resto, essa grande
geleia geral social instável e perigosa. Outra coisa importante: Joaquim Nabuco
observou com precisão que a escravidão corrompeu toda a nossa forma de ser, fez
com que o brasileiro desprezasse o trabalho, porque quem trabalhava era o
escravo. E a escravidão também corrompeu o modo como nós olhamos para nós
mesmos, como se um brasileiro pudesse se sentir superior diante dos outros.
Também acredito que a herança monárquica no Brasil é historicamente mais forte
que a republicana, ou seja, o brasileiro, mesmo em ambiente republicano, mantém
uma certa perspectiva monárquica do poder.
Como essa perspectiva
se manifesta?
É o brasileiro que não participa de sindicatos, comunidades de bairro,
partidos políticos, reuniões de pais na escola... Não participa nem da
assembleia do condomínio onde mora, mas espera muito do Estado! É essa
perspectiva de esperar tudo de um pai, um soberano que irá nos prover tudo.
Isso se dá porque, no passado, o brasileiro não foi chamado nem autorizado a
participar da construção das instituições e da própria identidade nacional. É
comum estar em uma mesa de bar e ouvir um brasileiro dizer que em Brasília todo
mundo é corrupto, que tem que fechar o congresso e chamar um ditador, ou um
imperador. Ainda tem muito monarquista no Brasil. Mas, em suas relações
privadas, a mesma pessoa fura fila, joga lixo na rua, anda pelo acostamento e
corrompe o agente público sempre que é da sua conveniência. E isso não se dá
apenas com o brasileiro pobre, com o analfabeto funcional, também age assim o
empresário que corrompe e sonega impostos.
Nesse contexto, como
interpretar as manifestações de junho passado?
Como não estávamos habituados a exercer democracia plena, nós
alimentamos algumas ilusões, até porque o Brasil também tem uma outra
característica: o messianismo, o salvador que entrará no poder e resolverá
tudo. Isso tem relação com o sebastianismo português. É interessante que, na
redemocratização, em 1984, esse sebastianismo aflora muito rapidamente na ideia
de que bastariam alguns anos de democracia para que todos os nossos problemas
se resolvessem. E principalmente que a gente poderia contar com alguns
salvadores da pátria, como o Collor, líder dos descamisados; o FHC, homem que
doma a inflação; o Lula, pai dos pobres; a Dilma, mãe do Bolsa Família... Acho
que hoje o Brasil está em uma espécie de estado de choque cívico. Por que está
demorando tanto para resolvermos nossos problemas? Por que a corrupção ainda continua?
Por que a violência é cada vez maior? Onde estão as fórmulas mágicas? Por que
as fórmulas nas quais apostamos não deram tão certo? Tem uma certa frustração
no ar.
É comparável à
frustração de um adolescente chegando à idade adulta?
Sim, é a ideia de que somos um gigante adormecido que vai acordar e
virar um país de primeiro mundo. Acho que está ocorrendo algo muito saudável, o
Brasil está pela primeira vez se olhando no espelho e perguntando “quem sou
eu?”, “quem vai resolver meus problemas?”. Numa sociedade republicana e
democrática, não é um rei ou o ditador quem resolve as coisas, é a sociedade
organizada. O nosso desafio é assumir a República que a gente proclamou em 1984
(ele se refere às Diretas Já) e referendou por plebiscito em 1993 (os eleitores
escolheram o modelo de república presidencialista). Acho que as manifestações
são um sinal de vitalidade da nossa democracia, mas levantam algumas questões
complicadas: democracia não se faz no grito, e sim nas práticas diárias nas
escolas, nas empresas, nas ONGs, nos partidos políticos, nos sindicatos, nas
urnas... Esse aspecto ainda não foi percebido pelo brasileiro, que vai bonitão
pra rua como cara-pintada.
Mas há uma frustração
real.
Há também uma parte dos jovens que está frustrada, que é abusada
diariamente com ônibus ruim, metrô que atrasa, polícia que dá geral nele quase
todo dia... Na hora de fazer manifestação, esse jovem pensa “agora, aqui é uma
Suíça”, aí quebra tudo, arrebenta, não quer nem saber. Mas democracia não se
faz com quebra-quebra. Como o regime militar reprimiu demais, perseguiu
inimigos, torturou e matou, hoje estamos muito tolerantes com a violência, com
o banditismo e com o quebra-quebra. Não se pode deixar pessoas quebrarem o
patrimônio público ou privado com o falso argumento de que estão se
manifestando democraticamente. As manifestações estão confrontando as
instituições brasileiras democráticas e a capacidade do Estado de, ao mesmo
tempo em que assegura o direito à liberdade de expressão, impedir que um grupo
minoritário imponha sua vontade pela violência.
E como o senhor viu
os protestos em relação à Copa do Mundo?
É uma coisa saudável para a democracia, estamos confrontando nossos
próprios demônios. Esse negócio de querer ter hospitais, escola e serviços
público padrão Fifa... Se somos capazes de fazer estádios tão bons, coisa que
aparentemente não somos (risos), por que não também serviços públicos de
qualidade? É uma questão de prioridade nacional, de onde colocar nossos
escassos recursos. Essa é uma discussão que o futebol está levantando. Agora,
também está muito claro que a construção do Brasil dos nossos sonhos vai
demorar mais do que a gente imagina, porque envolve mudanças de natureza
cultural. Eu diria que jamais você vai ter em Brasília um Estado muito mais ou
muito menos corrupto e ineficiente do que a média da sociedade brasileira. O
que está em Brasília é a média do que somos. Se quisermos ter um Estado melhor
do que temos, teremos que qualificar a sociedade pela educação e cultura. Meus
netos e bisnetos não verão isso. Quem sabe daqui a 100 ou 200 anos seja assim.
Depois de uma
carreira como jornalista, o senhor pediu demissão para se dedicar à literatura
num país em que poucos escritores vivem de seus livros. Como foi esse momento
de mudança?
Durante mais de 30 anos, fui repórter de redação de jornal e revista.
Ali aprendi o que faço hoje. Às vezes me dizem que mudei de profissão, que hoje
sou escritor ou historiador. Não, sou um jornalista. Só mudei de formato.
Antes, fazia jornal ou revista. Hoje, faço livro-reportagem. Tudo ocorreu por
coincidência. Em 1997, eu trabalhava na Veja, e havia um projeto de uma série
sobre história do Brasil para ser distribuída para assinantes. Fiquei
encarregado de coordenar uma equipe de pesquisa, mas o projeto foi cancelado.
Resolvi continuar e radicalizar. Aí nasceu o livro 1808, em 2007. Acho que o
jornalista deve combinar profundidade de pesquisa com linguagem simples,
didática. Mas também é preciso ter senso de oportunidade. E era a véspera dos
200 anos da chegada da corte. Mesmo assim, fui surpreendido pelo interesse do
Brasil em história, nunca sonhei que meu livro iria se tornar um best-seller.
Aí, fui confrontado com a minha criatura, o autor não fica imune ao destino do
livro que escreve. Tive que pedir demissão, coisa que não imaginava. Meu chefe
disse: “Você está doido” (risos).
Nas palestras e
encontros literários de que participa, o senhor tem a chance de conhecer as
profundezas do Brasil. Como tem visto este país além dos grandes centros
urbanos?
É um Brasil multifacetado, com realidades regionais que continuam muito
distantes entre si, que está passando por um processo de transformação muito
grande e, principalmente, um processo de reflexão muito intenso. É uma semente
que está germinando em silêncio, e é muito boa. É uma maratona rodar esse país
de proporções continentais, mas me sinto animado, mesmo percebendo que temos
dificuldades enormes a enfrentar. No Piauí, por exemplo, percebi que há uma
grande parcela da população que vive do Bolsa Família, e lá a Dilma tem uma
popularidade enorme, maior do que no Sul e Sudeste do Brasil. Aí você vê duas
faces da mesma moeda: se, por um lado, o Bolsa Família é um esforço muito bom
de corrigir um passivo histórico de distribuição de renda, por outro é quase
uma reprodução à esquerda de um clientelismo que os coronéis nordestinos faziam
no passado, criando viveiros eleitorais.
O senhor também
passou, em 2012, pela experiência de morar nos EUA, quando pesquisava para o
livro 1989. Como foi esse mergulho na sociedade americana?
Minha esposa foi estudar inglês, e eu pude acessar a Biblioteca Oliveira
Lima, que fica em Washington. É um acervo de 40 mil documentos, que tem muita
coisa sobre a república e o império. E também é interessante observar os
próprios norte-americanos. Você vê que é uma sociedade muito organizada e tem
uma identidade muito forte em relação ao passado, seus fundadores, os símbolos
nacionais, como eles carregam e vestem aquela bandeira. Aqui, como tivemos
muitas rupturas, nossa referência do passado continua muito difusa, quem nós
somos, de onde viemos. O brasileiro não se identifica com o país no dia a dia,
só em momentos de catarse, como na morte do Ayrton Senna, no Carnaval, na Copa
do Mundo... No cotidiano, é até uma certa vergonha usar uma bandeira do Brasil
no carro. É um problema de identidade, de saber quem sou eu, quais os símbolos
e as referências mitológicas que servem para mim, com as quais me identifico.
Nenhum comentário:
Postar um comentário