Em última análise, decidi dar a meus filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não porque ache que eles serão mais felizes assim - pelo contrário -, nem porque acredite que, no fim, o bem compensa. Mas sim porque, em primeiro lugar, não conseguiria conviver comigo mesmo, e com a memória de meu pai, se criasse meus filhos para serem pessoas do tipo que ele me ensinou a desprezar.
Por Gustavo Ioschpe
Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saía
de casa para a escola numa manhã fria do inverno gaúcho. Chegando à portaria,
meu pai interfonou, perguntando se eu estava levando um agasalho. Disse que
sim. Ele me perguntou qual. “O moletom amarelo, da Zugos”, respondi. Era
mentira. Não estava levando agasalho nenhum, mas estava com pressa, não queria
me atrasar.
Voltei
do colégio e fui ao armário procurar o tal moletom. Não estava lá, nem em
nenhum lugar da casa. Gelei. À noite, meu pai chegou em casa de cara amarrada.
Ao me ver, tirou da pasta de trabalho o moletom. E me disse: “Eu não me importo
que tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta família, ninguém mente. Ponto.
Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi apenas um episódio mais memorável de algo
que foi o leitmotiv da minha formação familiar. Meu pai
era um obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade, honestidade, código
de conduta, escala de valores, menschkeit (firmeza de caráter, decência
fundamental, em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e exaustivamente
martelados na minha cabeça. Deu certo. Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu
me sinto deslocado.
Até hoje chego pontualmente aos meus
compromissos, e na maioria das vezes fico esperando por interlocutores que se
atrasam e nem se desculpam (quinze minutos parece constituir uma “margem de
erro” tolerável). Até hoje acredito quando um prestador de serviço promete
entregar o trabalho em uma data, apenas para ficar exasperado pelo seu atraso,
“veja bem”, “imprevistos acontecem” etc. Fico revoltado sempre que pego um táxi
em cidade que não conheço e o motorista tenta me roubar. Detesto os colegas de
trabalho que fazem corpo mole, que arranjam um jeitinho de fazer menos que o
devido. Tenho cada vez menos visitado escolas públicas, porque não suporto mais
ver professores e diretores tratando alunos como estorvos que devem ser
controlados. Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao ler o noticiário
e saber que entre os governantes viceja um grupo de imorais que roubam com
criatividade e desfaçatez.
Sócrates,
via Platão (A República, Livro IX), defende que o homem que
pratica o mal é o mais infeliz e escravizado de todos, pois está em conflito
interno, em desarmonia consigo mesmo, perenemente acossado e paralisado por
medos, remorsos e apetites incontroláveis, tendo uma existência desprezível,
para sempre amarrado a alguém (sua própria consciência!) onisciente que o
condena. Com o devido respeito ao filósofo de Atenas, nesse caso acredito que
ele foi excessivamente otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais perto
da compreensão da perversidade humana ao notar, nos ensaios reunidos no livro Responsabilidade e Julgamento, que esse desconforto
interior do “pecador” pressupõe um diálogo interno, de cada pessoa com a sua
consciência, que na verdade não ocorre com a frequência desejada por Sócrates.
Escreve ela: “Tenho certeza de que os maiores males que conhecemos não se devem
àquele que tem de confrontar-se consigo mesmo de novo, e cuja maldição é não
poder esquecer. Os maiores malfeitores são aqueles que não se lembram porque
nunca pensaram na questão”. E, para aqueles que cometem o mal em uma escala
menor e o confrontam, Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo por si
próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si próprio, muitas vezes não
funcionava, e a sua explicação era que o homem pode mentir para si mesmo”. Todo
corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica para os seus atos, algo
que justifique o porquê de uma determinada lei dever se aplicar a todos,
sempre, mas não a ele(a), ou pelo menos não naquele momento em que está
cometendo o seu delito.
Cai por terra, assim, um dos poucos
consolos das pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo tranquilo”. Os
escroques também! Se eles tivessem dramas de consciência, se travassem um
diálogo verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou não teriam optado por sua
“carreira” ou já teriam se suicidado. Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que
Freud chamou de superego: seguimos um comportamento moral porque ele nos foi
inculcado por nossos pais, e renegá-lo seria correr o risco da perda do amor
paterno.
Na minha visão, só existem, assim,
dois cenários em que é objetivamente melhor ser ético do que não. O primeiro é
se você é uma pessoa religiosa e acredita que os pecados deste mundo serão punidos
no próximo. Não é o meu caso. O segundo é se você vive em uma sociedade ética
em que os desvios de comportamento são punidos pela coletividade, quer na forma
de sanções penais, quer na forma do ostracismo social. O que não é o caso do
Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse ou não a frase, mas ela é verdadeira: o
Brasil não é um país sério.
Assim é que, criando filhos
brasileiros morando no Brasil, estou às voltas com um deprimente dilema.
Acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho para a vida. Essa é a
nossa responsabilidade: dar a nossos filhos os instrumentos para que naveguem,
com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo real. E acredito que a
ética e a honestidade são valores axiomáticos, inquestionáveis. Eis aí o
dilema: será que o melhor que poderia fazer para preparar meus filhos para
viver no Brasil seria não aprisioná-los na cela da consciência, do diálogo
consigo mesmos, da preocupação com a integridade? Tenho certeza de que nunca
chegaria a ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia, como pai,
simplesmente ser mais omisso quanto a essas questões. Tolerar algumas mentiras,
não me importar com atrasos, não insistir para que não colem na escola, não
instruir para que devolvam o troco recebido a mais...
Tenho
pensado bastante sobre isso ultimamente. Simplesmente o fato de pensar a
respeito, e de viver em um país em que existe um dilema entre o ensino da ética
e o bom exercício da paternidade, já é causa para tristeza. Em última análise,
decidi dar a meus filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não porque
ache que eles serão mais felizes assim - pelo contrário -, nem porque acredite
que, no fim, o bem compensa. Mas sim porque, em primeiro lugar, não conseguiria
conviver comigo mesmo, e com a memória de meu pai, se criasse meus filhos para
serem pessoas do tipo que ele me ensinou a desprezar. E, segundo, tentando um
esboço de resposta mais lógica, porque sociedades e culturas mudam. Muitos dos
países hoje desenvolvidos e honestos eram antros de corrupção e sordidez 100
anos atrás. Um dia o Brasil há de seguir o mesmo caminho, e aí a retidão que
espero inculcar em meus filhos (e meus filhos em seus filhos) há de ser uma
vantagem, e não um fardo. Oxalá.
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