Isso se expressa no comportamento de nossos governantes, que não disputam nada pensando no país, mas em abocanhar ou manter o poder, aqui tão hipertrofiado, abarrotado de privilégios e odiosamente infenso ao controle dos governados.
Por JOÃO UBALDO RIBEIRO
Acho que todo mundo lembra o que disse num discurso o
presidente Kennedy: “Não pergunte o que seu país pode fazer por você, pergunte
o que você pode fazer por seu país.” Eu estava lendo os jornais e aí me
ocorreu, como já deve ter ocorrido a muitos de vocês, que nossa prática
política se orienta por uma atitude oposta a essa exortação. Ou seja, queremos
saber o que o Brasil pode fazer por nós, mas não alimentamos muita curiosidade
sobre o que podemos fazer pelo Brasil. Isso se expressa no comportamento de
nossos governantes, que não disputam nada pensando no país, mas em abocanhar ou
manter o poder, aqui tão hipertrofiado, abarrotado de privilégios e odiosamente
infenso ao controle dos governados.
Para que mais, a não ser desfrutar desses privilégios, não
se sabe, porque não existe projeto, além da cantilena sobre justiça social,
saúde para todos, educação de qualidade e outras generalidades com as quais
todos concordam. Que modelo de estrutura socioeconômica queremos, que Estado
queremos, que país queremos, como chegaremos lá? Que propostas concretas são
oferecidas? Ninguém diz — e os programas partidários, como os próprios
partidos, causam constrangimento, pela ausência de ideias e compromissos
sérios. O negócio é se eleger e se abancar, depois se vê o que se pode fazer,
conforme a necessidade e a serventia para a permanência no poder. Na pátria,
como se falava antigamente, ninguém se mostra muito interessado.
Tudo o que se faz hoje é visando às eleições, ou seja, a
continuação no poder ou ascensão a ele. Descobriram agora essa lambança das
concorrências em São Paulo, que não é propriamente inédita na história
nacional, e grande parte da reação parece do tipo “viu, viu? nós rouba, mas cês
também rouba!” Todo mundo na vida pública rouba, o que pode não ser uma
afirmação justa, mas já virou axioma na descrição de nossa realidade e um dado
importante em qualquer equação política. Invoca-se o princípio da falcatrua
consuetudinária. Ou seja, se é ilegal, mas costumeiro, prevalece o costume e é
considerado sacanagem e falta de coleguismo fazer denúncias ou querer punições.
Que outras novidades têm para nos segredar? Quem não aposta que nada vai dar em
nada?
O Estado às vezes parece ter as pernas bambas. Recomeçou o
dramalhão do julgamento do mensalão e muita gente não entende mais nada, a
começar por esse singular minueto processual, através do qual o Supremo
Tribunal Federal vira penúltima instância, dia sim, dia não. Todo mundo quer
saber se as sentenças emanadas do Supremo eram à vera ou não eram, devia ser
simples de responder. Essa novela vai por aí, se arrastando já há não se sabe
quanto tempo, todo dia aparece uma notícia inesperada e creio que nenhum de nós
se surpreenderá se, esta semana, for noticiado que a decisão final do Supremo
estará condicionada à resposta a uma consulta feita pela Câmara de Deputados,
ou coisa assim, o que, com a gripe que atacou um ministro, o impedimento de
outro, e o atraso de outro, leva o caso, para que tenhamos certeza de uma
decisão justa, para depois do recesso do Judiciário, no próximo ano.
Vimos também a cena envaidecedora em que nosso ministro
das Relações Exteriores se manifestou, conforme ouvi num noticiário, “com
dureza”, sobre a espionagem cibernética americana, numa fala dirigida em pessoa
ao secretário de Estado John Kerry. Disse umas verdades na cara do gringo, que
o escutou com atenção, cortesia e respeito, para logo após retrucar que nos
devotava desmesurado amor e descomedida amizade, mas continuaria a espionar e,
acreditássemos, era para o nosso próprio bem. Se não gostarmos, claro, temos
todo o direito de nos queixar ao bispo, ele compreende.
Esse mesmo ministério, aliás, deve estar às voltas com o
perdão de dívidas milionárias que alguns países africanos têm com o Brasil.
Comenta-se que isso é por causa do esquerdismo do atual governo, notadamente em
sua política externa. Comenta-se também que o perdão dessas dívidas possibilita
que os governos beneficiados fechem novos contratos com empreiteiras
brasileiras. É o que dá o envolvimento com setores notoriamente de esquerda,
como nossas empreiteiras, essa linha avançada do socialismo. Há apenas um
ligeiro embaraço na coisa, pois se sabe que as empreiteiras, com toda a
certeza, vão receber o dela, mas os financiadores, ou seja, nós, vamos
contribuir mais uma vez para os crimes e as contas bancárias de déspotas,
genocidas e saqueadores de riquezas nacionais
No cada vez mais fugidio setor de grandes realizações, a
complexa coreografia governamental se tem exibido em torno do trem-bala, que o
pessoal lá do boteco deu para chamar “trem-bala perdida”. O trem-bala é um
exemplo notável de aumento de custos recordista, talvez sem precedentes em todo
o mundo, porque já perdemos a conta de quantas vezes esses custos foram
revisados para cima. E agora li não sei onde, maravilhado com os nossos
mecanismos de distribuição de renda, que, mesmo que se venha a desistir do
trem-bala, o custo dele já terá sido mais ou menos um bilhão de reais. Não
entendi direito, mas não se pode deixar de manifestar admiração.
Diante dessa sarabanda agitada e da luta para não largar o
osso, lembro-me de quando eu era menino em Itaparica, punha um pedaço de
rapadura no chão e ficava esperando formigas brotarem do nada, várias espécies
que só tinham em comum gostar de açúcar. Umas ruças, grandalhonas, eram minhas
favoritas, porque ficavam frenéticas e não paravam um segundo, para lá e para
cá, em cima da rapadura, apesar de que, volta e meia, uma parecia se saciar e
caía imóvel — dura para trás, dir-se-ia. Eu não sabia, mas estava vendo o
Brasil, só que as formigas não se saciam e quem cai para trás somos nós.
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