sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Chute a santa, mas adore Dilma

Os descontentes ou estão a serviço da reação ou são pessoas abduzidas por um espírito maligno, que as faz perder a capacidade até de arbitrar o que é melhor para si mesmas. A matriz dessa visão de mundo é o fascismo, de direita ou de esquerda. Os novos arautos, como antes, falam em nome do progresso, da igualdade e do Bem. Foi com a colaboração de obreiros assim que Hitler e Stálin se apresentaram como engenheiros de homens. Mataram milhões sem piscar.


Por Reinaldo Azevedo (Folha de SP)
No Brasil, é permitido chutar a santa.
No Brasil, é permitido dizer que Jesus Cristo era um banana.
No Brasil, é permitido sacanear com igual ignorância ou sabedoria o sagrado e o profano.
E não esperem ler aqui a defesa de alguma forma de censura. Cada um diga o que quiser. E arque com as consequências aceitáveis na democracia. É a natureza do jogo.
Mas um território se pretende verdadeiramente divino e imune à crítica: o do petismo, incluindo os espaços que ele diviniza. Os quatro analistas do Santander, como sabemos, foram para a fogueira em razão de um texto sacrílego.
Nesta semana, mais uma não-notícia ganhou ares de escândalo, inflamando o espírito jihadista. A consultoria Rosenberg Associados, numa síntese notável, considerou que Dilma ainda é a favorita, mas emendou: "O cenário mais provável é a continuidade da mediocridade, do descompromisso com a lógica, do mau humor prepotente do poste que se transformou em porrete contra o senso comum".
É só a opinião de uma consultoria. Fez-se uma gritaria danada na imprensa. Alberto Cantalice, vice-presidente do PT e autor da lista negra de jornalistas (estou lá, o que me honra), afirmou que o partido iria ignorar a avaliação. Mas o seu exército pediu que se queimassem as bruxas.
Segundo a metafísica dos fanáticos –e isto, ao menos, essa gente preserva do socialismo–, é preciso fulminar a opinião contrária como expressão do Mal. A crítica nunca é tomada como um caminho legítimo, ainda que errado.
Alguém considera, por exemplo, ruim ou péssima a gestão de Fernando Haddad em São Paulo, como fazem 47% dos paulistanos? Descarte-se as possibilidades de o prefeito ser incompetente, ter errado nas escolhas ou alimentar interesses menores –afinal, só os "inimigos" os têm. Os descontentes ou estão a serviço da reação ou são pessoas abduzidas por um espírito maligno, que as faz perder a capacidade até de arbitrar o que é melhor para si mesmas.
A matriz dessa visão de mundo é o fascismo, de direita ou de esquerda. Os novos arautos, como antes, falam em nome do progresso, da igualdade e do Bem. Foi com a colaboração de obreiros assim que Hitler e Stálin se apresentaram como engenheiros de homens. Mataram milhões sem piscar. A tarefa de transformar o morticínio em teoria política, em categoria de pensamento e numa forma de ascese ficou a cargo de intelectuais –incluindo os da imprensa.
O tucano Aécio Neves está padecendo nas mãos do espírito miliciano deste tempo. Um candidato de oposição, Santo Deus!, é constrangido a evitar críticas ao governo, ou pesará sobre ele a suspeita de que, se eleito, vai punir os pobres. Não era diferente com Eduardo Campos, tornado agora um respeitável sonhador morto. Quem o viu no "Jornal Nacional" pode ter ficado com a impressão de que era candidato à Presidência não porque tivesse algo a dizer, mas porque não tinha como escapar dos entrevistadores. Outro elogia o homem "que buscava o sonho". Huuummm... Só não conseguia aceitar o político que buscava outra... realidade! Admiro o decoro com cadáveres, desde que se respeitem os vivos.
A imprensa é a primeira a demonstrar, com correção, que uma política desastrada de combate à inflação jogou parte da conta nas costas da Petrobras, cujo valor de mercado despencou. Ai de Aécio, no entanto, se apontar o desastre! Com ar inquiridor, lá vem a pergunta: "Então, se o senhor vencer a disputa, vai elevar o preço dos combustíveis?" Se ele diz "não", passa a ser usuário do mal que denuncia; se diz "sim", ninguém quer saber como e quando a correção seria feita. Busca-se um título ou uma síntese bucéfala: "Se eleito, tucano diz que aumenta o preço da gasolina".
"É uma pergunta legítima", dirá alguém. Tudo o que interdita o debate e torna a realidade ainda mais obscura agride a verdade e o processo democrático. De resto, é preciso definir se entrevistadores perguntam para, de fato, saber ou para desmoralizar o entrevistado. Será assunto de outra coluna.
Está com vontade de criticar a Dilma, leitor? Não seja herético ou iconoclasta! Chute a imagem de Nossa Senhora, a santa que a governanta já chamou de... "deusa"!


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