Trata-se de uma época em que se sonha com um mundo habitado por pessoas completamente tolerantes e isentas de qualquer julgamento... Como se isso fosse possível!
Carolina Foglietti * (Do blog de Rodrigo Constantino)
Ao longo dos últimos anos o fenômeno
cultural do politicamente correto invadiu a vida pública e privada das pessoas,
tendo assumido o estatuto de uma nova religião. Estamos vivendo na era dos
eufemismos onde o ato de nomear passou a ser meticulosamente cerceado e,
dependendo do caso, severamente punido. Uma série de restrições simbólicas,
imaginárias e reais, nos foram impostas por parte da própria sociedade, que se
quer livre de todo e qualquer preconceito, da maldade e do ódio ao próximo.
Trata-se de uma época em que se sonha com um mundo habitado por pessoas
completamente tolerantes e isentas de qualquer julgamento... Como se isso fosse
possível!
Se, em um primeiro momento, chamar um
deficiente físico de portador de necessidades especiais, ou um negro de
afro-descente, pode parecer louvável, por outro, devemos questionar ate que
ponto tal atitude não é fruto de um sentimento de culpa inconsciente que, ao
mascarar a diferença com rótulos que ressaltam o preconceito e a segregação,
satisfazem o desejo de manter a alteridade distante de si.
Basta um olhar mais atento para
perceber que por trás dessa áurea de boas intenções, jaz uma profunda
intolerância marcada por um narcisismo primário, próprio de sujeitos que se
mostram incapazes de lidar com as adversidades da vida. Assim, buscam
inutilmente se blindar contra o mal-estar próprio ao laço social impondo a si
próprios e aos demais uma visão de mundo maniqueísta, neutralizando a linguagem
e causando diversos efeitos nefastos principalmente às crianças, que precisam
simbolizar seus conflitos e angústias para constituir sua identidade de forma
mais saudável.
Para viver de forma mais desejante e
autoral, imprimindo em nossa trajetória os traços de nossa singularidade, o ser
humano precisa elaborar uma tarefa particularmente difícil: desenvolver a
capacidade de dotar a vida em geral de mais significado. Para tanto, sabemos
que nada é mais importante do que o impacto da família e das pessoas que cuidam
da criança, bem como da transmissão da herança cultural. Quando as crianças são
pequenas, porém, a literatura mostra ser um dos instrumentos que melhor
canaliza esse tipo de informação. Isso porque para lidar melhor com os
obstáculos psicológicos do crescimento – superando decepções narcisistas,
dilemas edipianos, rivalidades fraternas – a criança precisa elaborar o que
está se passando em seu eu consciente para que possa enfrentar o que se passa
em seu inconsciente.
O fenômeno do politicamente correto,
porém, se recusa a permitir que as crianças saibam que a fonte de nossos males
e insucessos está na própria natureza humana – no pendor de todos os homens a
agir de forma agressiva e egoísta, por raiva e angústia. A ditatura, não tão
velada, do manto da retidão nutre a ilusão de que todos os homens são bons.
Entretanto as crianças sabem que elas não são sempre boas e que, vez ou outra,
escolhem, de fato, não sê-lo. Isso contradiz a mensagem politicamente correta,
tornando a criança um monstro a seus próprios olhos.
O que mais preocupa nessa cruzada do
politicamente correto é a manipulação e a distorção da literatura infantil, que
tem a importante função de ajudar as crianças à suportarem, minimamente, a
complexidade da vida. É um grande engano supor que, em nome de um "mundo
melhor", seria possível retirar do mundo infantil o medo, o mal, a
insegurança, a ambiguidade de sentimentos pela mesma pessoa, a angústia, etc.
Tentar fazer isso é uma maneira cruel de se proteger contra o inevitável,
aprofundando a culpa e a violência de nossos filhos.
Uma parcela dominante de nossa
cultura deseja fingir, particularmente no que se refere às crianças, que o lado
obscuro do homem não existe, e professa a crença num aprimoramento otimista. No
entanto, o que a psicanálise nos ensina e que atestamos tanto em nossas
clínicas quanto no social é que o que não pode ser fantasiado sendo, portanto,
recusado no simbólico, retorna no real, dando margem tanto às devastadoras, e
às vezes irreversíveis, passagens ao ato: suicídios, homicídios, racismo,
espancamentos, etc., quanto à graves doenças psicossomáticas.
A criança necessita que lhe sejam
oferecidos recursos simbólicos sobre como lidar com situações e sentimentos tão
contraditórios e, assim, saber equilibrar de forma mais satisfatória a
introjeção da autoridade dos pais com a autonomia necessária para poder se
separar deles.
O politicamente correto é uma forma
extremamente poderosa de eliminar as diferenças. Quando todos são iguais e não
há espaço para a discriminação, isto é, para a separação, a possibilidade de
fazer escolhas é aniquilada, bem como o exercício de metabolizar as perdas e
assumir as consequências do ato de escolher. Para suportar e tolerar melhor o
diferente é preciso que antes possamos escolher o que NÃO queremos ser. Caso
contrário, não estaremos lidando com diferenças, mas apenas com nosso
acovardado narcisismo que além de cego é cínico.
* Psicanalista e membro da Escola Lacaniana de Psicanálise
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