sábado, 26 de janeiro de 2013

Uma oposição que se deixou massacrar. Há saída?


As oposições têm de perder o receio de falar abertamente ao povo que trabalha e estuda. Que estuda e trabalha. Em vez de tentar dividir os louros da caridade, tem de ser porta-voz do progresso. 

(..) Esses libertadores (a turma que coabita o poder) não vêem a si mesmos como expressão de um conjunto de valores em meio a tantos outros, com o quais teriam de competir, mas como a evolução do pensamento, o seu desdobramento superior. Assim, ou se está com eles ou se está com o atraso, com o retrocesso, com a reação. Ora, se o “outro”, o que pensa diferente, não é um adversário, mas um inimigo da civilização, então não merece respeito e tem de ser eliminado. 

(..) No fim das contas, no Brasil de hoje, é preciso saber onde está o conservadorismo para que ele possa, se preciso, proteger de si mesmos até os “progressistas”. A lâmina começou a descer sobre o pescoço de Robespierre quando ele mandou cortar a cabeça do primeiro “reacionário”.


Escrevi ontem alguns posts sobre o bom comportamento das oposições no Brasil — o que quer dizer, na verdade, mau comportamento. Abaixo, segue o artigo que publiquei na última edição de 2010 da revista VEJA. Acho que ele toca em alguns aspectos relevantes desse debate. Trata-se de um texto bastante longo. Mas esse nunca foi um empecilho na nossa relação, certo?

*

“Em nosso país, queremos substituir o egoísmo pela moral (…); os costumes pelos princípios; as conveniências pelos deveres; a tirania da moda pelo império da razão; o desprezo à desgraça pelo desprezo ao vício; a insolência pelo orgulho; a vaidade pela grandeza d’alma; o amor ao dinheiro pelo amor à glória (…); a intriga pelo mérito (…); o tédio da volúpia pelo encanto da felicidade; a pequenez dos grandes pela grandeza do homem; um povo cordial, frívolo e miserável por um povo generoso, forte e feliz; ou seja, todos os vícios e ridicularias da Monarquia por todos os milagres da República.”

As palavras acima são parte de um discurso feito por Robespierre, um dos líderes jacobinos, a corrente mais radical da primeira safra dos revolucionários franceses, e foram pronunciadas no dia 5 de fevereiro de 1794. É grande o risco de o leitor ter ouvido de um professor, em algum momento de sua vida escolar, que ali estava um cara batuta, que queria “liberdade, igualdade e fraternidade”. Quem de nós pode ser contra o horizonte que ele propõe? No dia 28 de julho daquele mesmo ano, Robespierre perdeu a cabeça na guilhotina. Ainda retornarei à França do fim do século 18 depois de passar pelo Brasil do começo do século 21.

De volta para o futuro, pois:

Quem contesta o presidente Luiz Inácio Lula da Silva odeia o país. Quem manifesta contrariedade com a concessão de um prêmio literário a uma celebridade, em um jogo de cartas marcadas, está com inveja. Quem enfrenta a patrulha politicamente correta quer fazer a história marchar para trás. Os dias andam hostis à crítica – a qualquer uma e em qualquer área. Não é a voz do povo que expressa intolerância, mas a dos que se querem seus intérpretes privilegiados. As urnas demonstraram que a massa de eleitores é bem mais plural do que os donos do “Complexo do Alemão” mental da política, da ideologia, da cultura e até de setores da imprensa, que tentam satanizar o dissenso.

Nesse ambiente, fazer oposição ao governo liderado pelo PT, partido que atribui a si mesmo a missão de depurar a história, é tarefa das mais difíceis, especialmente quando a minoria parlamentar será minoria como nunca antes na democracia deste país. Ao longo de oito anos, é preciso convir, os adversários de Lula não conseguiram encontrar o tom e se deixaram tragar pela voragem retórica que fez tabula rasa do passado e privatizou o futuro. O PT passa a impressão de já ter visitado o porvir e estar entre nós para dar notícias do amanhã.

A pergunta óbvia é com que discurso articular o dissenso, sem o qual a democracia se transforma na ditadura do consentimento?

Não existem receitas prontas. Mas me parece óbvio que o primeiro passo consiste em libertar a história do cativeiro onde o PT a prendeu. Isso significa mostrar, e não esconder, os feitos e conquistas institucionais que se devem aos atuais oposicionistas e que se tornaram realidade apesar da mobilização contrária bruta e ignorante do PT.  Ajuda também falar a um outro Brasil profundo, que não aquele saído dos manuais da esquerda, sempre à espera de reparações e compensações promovidas pelo pai-patrão dadivoso ou a mãe severa e generosa, à espera da “grande virada”, que nunca virá!

Temos já um Brasil de adultos contribuintes, com uma classe média que trabalha e estuda, que dá duro, que pretende subir na vida, que paga impostos escorchantes, diretos e indiretos, a um estado insaciável e ineficiente. Milhões de brasileiros serão mais autônomos, mais senhores de si e menos suscetíveis a respostas simples e erradas para problemas difíceis quando souberem que são eles a pagar a conta da vanglória dos governos. É inútil às oposições disputar a paternidade do maná estatal que ceva mega-currais eleitorais. Os órfãos da política, hoje em dia, não são os que recebem os benefícios – e nem entro no mérito, não agora, se acertados ou não -, mas os que financiam a operação. Entre esses, encontram-se milhões de trabalhadores, todos pagadores de impostos, muitos deles também pobres!

Esse Brasil profundo também tem valores – e valores se transformam em política. O que pensa esse outro país? O debate sobre a descriminação do aborto, que marcou a reta final da disputa de 2010, alarmou a direção do PT e certa imprensa “progressista”. Descobriu-se, o que não deixou menos espantados setores da oposição, que amplas parcelas da sociedade brasileira, a provável maioria, cultivam valores que, mundo afora, são chamados “conservadores”, embora essas convicções, por aqui, não encontrem eco na política institucional – quando muito, oportunistas caricatos os vocalizam, prestando um desserviço ao conservadorismo.

Terão as oposições a coragem de defender seu próprio legado, de apelar ao cidadão que financia a farra do estado e de falar ao Brasil que desafia os manuais da “sociologia progressista”? Terão as oposições a clareza de deixar para seus adversários o discurso  do “redistributivismo”, enquanto elas se ocupam das virtudes do “produtivismo”? Terão as oposições a ousadia de não disputar com os seus adversários as glórias do mudancismo, preferindo falar aos que querem conservar conquistas da civilização? Lembro, a título de provocação, que o apoio maciço à ocupação do Complexo do Alemão pelas Forças Armadas demonstrou que quem tem medo de ordem é certo tipo de intelectual; povo gosta de soldado fazendo valer a lei. Ora, não pode haver equilíbrio democrático onde não há polaridade de idéias. Apontem-me uma só democracia moderna que não conte com um partido conservador forte, e eu me desminto.

Antes de saber quem vai liderar um dos pólos, é preciso fazer certas escolhas. O Congresso aprovou há pouco, por exemplo, o sistema de partilha para o pré-sal. Não se ouviu a voz da oposição, a exceção foi a senadora Kátia Abreu (DEM-TO). O PT inventou a farsa, amplamente divulgada na campanha eleitoral, de que não passava de “privatização” o sistema de concessão, que conduziu o país à quase auto-suficiência e que fez dobrar a produção de petróleo no governo FHC. Mentiu, mas venceu o embate. Podem vir por aí as reformas. Quais setores da sociedade as oposições pretendem ter como interlocutores? Continuarão órfãos de representação milhões de eleitores que não se reconhecem na ladainha pastosa do  “progressismo”? As oposições têm de perder o receio de falar abertamente ao povo que trabalha e estuda. Que estuda e trabalha. Em vez de tentar dividir os louros da caridade, tem de ser porta-voz do progresso.

Essa oposição tem, em suma, de enfrentar uma esquerda que, se morreu há muito tempo na economia, exerce inquestionável hegemonia na cultura e na política, onde se esforça para aplicar o seu programa, cuja marca é ódio à divergência, que ela entende ser expressão da má consciência. Não houve um só teórico esquerdista relevante cujo objetivo não fosse a superação dos “limites” da democracia. Sem esse horizonte escatológico, inexiste esquerdismo.

Esses libertadores não vêem a si mesmos como expressão de um conjunto de valores em meio a tantos outros, com o quais teriam de competir, mas como a evolução do pensamento, o seu desdobramento superior. Assim, ou se está com eles ou se está com o atraso, com o retrocesso, com a reação. Ora, se o “outro”, o que pensa diferente, não é um adversário, mas um inimigo da civilização, então não merece respeito e tem de ser eliminado. Em um comício em Santa Catarina, Lula defendeu, por exemplo, que o DEM seja “extirpado” da política, como se um governo não fosse legitimado pela oposição, sem a qual ou se tem uma ditadura, ainda que de maioria, ou se tem um concerto de políticos contra a população. Não se enganem: em um regime em que todas as forças estivessem unidas em um grande pacto, sobraria apenas o povo como adversário.

Em uma anedota trágica, a aversão de Lula à oposição é tal que ele combate até a do Irã! Referindo-se aos protestos contra a reeleição fraudulenta de Mahmoud Ahmadinejad, comparou-os à reação de uma torcida de futebol que visse seu time perder. O apedrejamento da democracia é considerado “variante cultural” pelo petismo. Lula tomaria pau no Enem dos direitos humanos.  E não está só. Nesse ambiente, a crítica virou ou sabotagem ou expressão do isolamento ressentido de quem não pertence ao grupo dos “vitoriosos”, onde se encontram políticos, ideólogos, autores, pensadores e até jornalistas. Quem não fala como um deles o faria só por não ser um deles, como se a essência de um regime de liberdades não estivesse justamente no direito de… não ser um deles! Nas ditaduras também é possível dizer “sim”. O que caracteriza a democracia é a possibilidade de dizer “não”. Quando forças vitoriosas, convertidas em falanges do oficialismo, já não se ocupam mais em combater “o que” se diz, mas o direito de dizê-lo  – e, eventualmente, “quem” diz –  instala-e um regime de intolerância, ainda que seja aquela doce “intolerância dos tolerantes”. Como chegamos a isso?

Valores autoritários, considerados hoje em dia inquestionáveis ou incontrastáveis, não alcançaram essa condição apenas por força da militância de seus prosélitos. Seus adversários políticos e intelectuais também recuaram intimidados. Há pelo menos três eleições,  o PT opõe “estatismo” a “privatismo” (se me permitem os neologismos de uma luta velha). Na contramão de todas as evidências da história, o partido assegura as qualidades do primeiro contra os vícios do segundo, embora as melhores virtudes da moderna economia brasileira tenham nascido de escolhas feitas por Fernando Henrique Cardoso, antecessor de Lula, que tirou um pouco de estado da sociedade e pôs um pouco mais de sociedade no estado. As atuais oposições, é fato, têm sido fracas na defesa de suas conquistas e de seu legado. Recuaram diante da guerra promovida pelo PT.

Esse comportamento vexado, assustadiço, gerou outro fenômeno. Os setores da imprensa que não abrem mão de fazer o seu trabalho – e um deles é a crítica ao poder, a qualquer um – são, então, identificados pelos petistas como “o verdadeiro partido” a ser combatido e como o “real inimigo”. Por isso, os poderosos da hora se esforçam para criar mecanismos de censura e se declaram em guerra contra o que chamam “mídia”. No dia 20 de novembro, o Diretório Nacional do PT se reuniu para saudar a vitória de Dilma Rousseff e estabeleceu, numa resolução nacional, quatro objetivos estratégicos: erradicar a pobreza absoluta; reagir à guerra cambial; fazer a reforma política e democratizar os meios de comunicação. No caso desse último intento, pregou a necessidade de um “debate qualificado acerca do conservadorismo que se incrustou em setores da sociedade e dos meios de comunicação”. Ainda que tal “conservadorismo” existisse nos meios de comunicação -  o que, infelizmente, é mentira -, caberia indagar: seria ele ilegítimo, um mal a ser eliminado, uma excrescência a ser extirpada, um atraso a ser vencido? Em uma sociedade em que não houvesse “conservadores”, quem se encarregaria de institucionalizar os eventuais benefícios oriundos das “revoluções”?

A intolerância, que é primariamente política, a identificar no adversário não alguém com idéias eventualmente erradas, mas um sabotador, migra para o jornalismo, para a cultura, para os costumes – para a vida, enfim. Equipara-se então o confronto de idéias a um conflito típico de uma etapa anterior da civilização política, superada pela chegada ao poder daqueles que seriam os reais representantes do povo, do qual Lula se disse a própria “encarnação” em um “comício” realizado no dia 30 de novembro, quatro anos antes das eleições de 2014!  A fórmula consagrada pelo presidente – “nunca antes na história deste país” – torna toda a “história deste país” nada mais do que pré-história, mero rascunho daquilo que, agora, seria realização efetiva. A chegada do PT ao poder teria sido o “fiat lux”, o advento, o “Ano I da Civilização Brasileira”.

Em uma manifestação ilegal na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, USP,  em favor da então candidata Dilma Rousseff, a petista Marilena Chaui, que ali leciona filosofia, comentando a vitória do oposicionista José Serra em oito estados no primeiro turno, lançou a teoria de que ele só triunfara nos locais onde predomina o latifúndio. Ora, o latifúndio, que tanta literatura esquerdista de baixa qualidade gerou no Brasil, nem existe mais. Para essa senhora, os votos dados à candidata de seu partido expressam uma vontade legítima do povo, que ela identifica com a dos oprimidos; já o oposicionista teria sido o escolhido ou por opressores ou por eleitores sob o seu jugo e representaria, portanto, uma vontade deformada, que tem de ser corrigida. Um dos blogueiros de Lula – o Planalto criou uma incubadora deles, alimentados com ração oficial paga pelo brasileiro trabalhador – já estimulou os jornalistas a identificar quem são os 3% que consideram, segundo as pesquisas, o governo “ruim ou péssimo”. Só faltou sugerir que os descontentes sejam identificados por algum sinal denunciador de sua condição de minoria ou usem uma tornozeleira eletrônica. A inferência é que o real tamanho da divergência no Brasil não passa de um gueto. Será mesmo?

Estavam habilitados a votar 135.803.366 pessoas; desse total, 29.197.152 decidiram não se apresentar às urnas; 4.689.428 anularam o seu voto; 2.452.597 houveram por bem não escolher ninguém; 43.711.388 preferiram Serra, e 55.752.529 ficaram com Dilma. A petista é a legítima presidente eleita, com 56,05% dos votos válidos, o que corresponde a 41% do eleitorado. Lula empenhou a sua popularidade no triunfo de sua criatura eleitoral. Seus 80% de aceitação, segundo as pesquisas ao menos, não foram suficientes para mover a vontade de quase 60% do eleitorado.

Especular sobre as virtudes e riscos de uma sociedade cindida é inútil aqui, até porque não existe cisão nenhuma. Isso é bobagem! O que temos, felizmente, é um país unido pelo pluralismo, que, à sua maneira, resiste às tentações do partido que se quer “único”. Legendas identificadas com a oposição fizeram o governo em dez estados, onde estão 52% da população e quase 60% do PIB.  É a sociedade brasileira, mais do que as oposições organizadas, que diz “não” à mexicanização da política, alusão ao PRI (Partido da Revolução Institucional), que governou o México por sete décadas, abrigando correntes que iam da direita à extrema esquerda.  Dado o quadro, estamos diante de uma óbvia dificuldade. Ela se define pelo fato de as oposições, um tanto acovardadas, precisarem ter a coragem de enfrentar os monopolistas da esperança.

Vem aí a presidente Dilma Rousseff. Será melhor ou pior? Não sei. Mais do que pessoas, o petismo é um sistema. De todo modo, estou convicto de que ninguém consegue, nem Dilma, emular com Lula nas manhas do auto-elogio; na satanização do “outro” porque outro; na diluição do sentido das palavras; na impressionante capacidade de submeter a história a uma torção tal que seus piores vícios acabam sendo saudados como suas melhores virtudes. O Brasil deixa de ser governado por um mito uspiano e volta a ser governado por um político, cujas ações serão avaliadas segunda a sua eficiência, não segundo as auroras que anuncia.

É chegada, então, a hora de voltar à França de Robespierre.

Suas ambições não eram pequenas. Na seqüência da exortação que abre este texto, ele antevê um país que cumpra “os desejos da natureza, o destino da humanidade e as promessas da filosofia, absolvendo a providência do reinado do crime e da tirania”. Queria um país que fosse “o terror dos opressores e a consolação dos oprimidos”; esperava ver brilhar a “aurora da felicidade universal”. O governo que ele liderou de 1792 até a sua morte ficou conhecido como a fase do “Terror”. Para realizar todos os seus sonhos de justiça, começou por mandar à guilhotina os adversários, até que chegou a hora de liquidar os aliados, destino fatal de toda revolução. O marxismo chinfrim que domina os livros de história, especialmente no Brasil, ensina que uma grande conspiração de reacionários concorreu para separar o corpo de Robespierre de sua cabeça. Falso! Ele próprio havia doutrinado o povo sobre as “virtudes” de um modelo no qual a eliminação física do outro é uma forma de superar os entraves da história, colocando-a em um novo patamar de racionalidade.

Lênin, o líder da revolução russa, assassino meticuloso, levou a lição ao pé da letra. Antes do terror revolucionário robespierriano, a morte do inimigo ou era conseqüência óbvia do confronto dos litigantes ou evidência de que a sociedade precisava de um contrato ou de um estado tirano para controlar os apetites individuais. Robespierre deixou uma herança perversa, abraçada com entusiasmo por Karl Marx e pelos marxistas: a noção de que a eliminação do adversário é uma forma de humanismo e uma expressão do progresso social e da história. Esse princípio é parte do DNA das esquerdas. Ele pode se manifestar com mais ou com menos virulência ainda hoje, movendo-se, muitas vezes, no molde institucional de regimes democráticos, mas sempre empenhado em mudar a sua natureza sob o pretexto de ver brilhar a “aurora da felicidade universal”.

Um país não precisa de oposição porque seu programa é necessariamente melhor do que o do governo de turno. Um país precisa de oposição porque ela é a evidência de que se vive numa democracia e a garantia de que as disputas políticas não acabarão sendo resolvidas pela guilhotina – ainda que uma guilhotina moral. No fim das contas, no Brasil de hoje, é preciso saber onde está o conservadorismo para que ele possa, se preciso, proteger de si mesmos até os “progressistas”. A lâmina começou a descer sobre o pescoço de Robespierre quando ele mandou cortar a cabeça do primeiro “reacionário”.




Nenhum comentário:

Postar um comentário