domingo, 29 de junho de 2014

“Nosso Brasil dos sonhos Ainda vai demorar”

Além disso, também herdamos uma concentração centralizada e autoritária do Estado, uma pequena elite tutela todo o resto, essa grande geleia geral social instável e perigosa. (..)

O Brasil também tem uma outra característica: o messianismo, o salvador que entrará no poder e resolverá tudo.(..)
 Se, por um lado, o Bolsa Família é um esforço muito bom de corrigir um passivo histórico de distribuição de renda, por outro é quase uma reprodução à esquerda de um clientelismo que os coronéis nordestinos faziam no passado, criando viveiros eleitorais.

“Nosso Brasil dos sonhos Ainda vai demorar”

Abandonar uma carreira de sucesso, depois dos 50 anos, para realizar um sonho juvenil pode ser uma aventura arriscada, mas recompensadora. Laurentino Gomes sabe bem disso. Depois de mais de duas décadas trabalhando na editora Abril, o jornalista deixou o cargo de diretor superintendente para se consagrar como escritor. Abordando a história brasileira de modo envolvente, seus livros contrabalançam narrativas e análises históricas com momentos pitorescos de figuras proeminentes do passado. Sua trilogia de livros 1808, 1822 e 1889 já vendeu mais de 2 milhões de exemplares desde 2007. Os dois primeiros levaram o título de Livro do Ano de Não Ficção no Prêmio Jabuti de 2008 e 2011, uma das mais tradicionais láureas da literatura brasileira. Aos 58 anos, o escritor paranaense, filho de agricultores, mantém suas pesquisas sobre o passado do país em busca de referências para seu próximo livro. ZH conversou com Laurentino na Feira do Livro de Canoas, que trouxe o autor ao Estado. Nesta entrevista, analisa diferentes facetas do modo de ser do brasileiro sob uma perspectiva histórica, aponta desafios da democracia e conta como foi a transição pessoal de jornalista para escritor best-seller.

Como explicar a identidade do brasileiro com base em nosso passado?

Especialmente nessas três datas com as quais trabalho em meus livros, 1808, 1822 e 1889, tenho observado muitas das características do Brasil de hoje, como se fosse nosso DNA. Quando a corte portuguesa chegou ao país, em 1808, encontrou um oceano de pobreza, analfabetismo, escravidão, concentração de riquezas, rivalidades locais... Os portugueses receberam a incumbência de ocupar um território 91 vezes maior que a pequenina metrópole portuguesa e o fizeram distribuindo grandes quantidades de terra a quem se dispunha a vir para cá, mantendo a população na ignorância e importando mão de obra escrava. Gente aventureira, exploração de matérias-primas e escravos: essa é a base constitutiva do Brasil Colônia. É interessante observar que, após a chegada da corte, um personagem como José Bonifácio de Andrada e Silva, faz uma observação curiosa em carta a um amigo: “Amálgama muito difícil será a liga de metal tão heterogêneo num corpo sólido e político”. Ele está dizendo: como vamos construir um país com essa matéria-prima?

Bem diferente do que se viu nos Estados Unidos, então colônia inglesa.

Quando D. João chegou aqui, não existia sociedade civil, como havia na América inglesa, uma sociedade altamente alfabetizada, protestante, com senso de participação comunitária, que rompe com a Inglaterra e constrói o Estado de baixo para cima, em forma de democracia republicana. No Brasil, existia um oceano de não cidadãos e uma pequena elite, de 10 a 15 mil pessoas, que chega de Portugal e começa a construção do Estado de cima para baixo: abre os portos, cria escolas de Medicina, imprensa régia, academia militar... Embaixo disso, uma geleia geral social. O Brasil era um experimento muito instável, que ameaçava fugir do controle. Diante do perigo de guerra civil que poderia fragmentar o país e ameaçar o status quo ao armar os escravos, a elite brasileira optou por um caminho conservador: manter a monarquia portuguesa, que faz a independência. Ou seja, o Brasil rompe vínculos com Portugal, mas deixa a ordem social inalterada: escravidão, analfabetismo, latifúndio. Tanto é que o Brasil é o último país da América a abolir o tráfico negreiro e a escravidão. Na época da independência, a América espanhola tinha 22 universidades, já a primeira universidade brasileira é de 1912, 90 anos mais tarde. Com isso, o Brasil vai acumulando passivos históricos.

Que passivos são esses?

Em primeiro lugar, a falta de prioridade com a educação e o analfabetismo. Até meados do século 20, 50% da população era analfabeta. Em segundo lugar, a grande concentração de propriedade, uma coisa que até hoje se discute, embora acredite que não faça mais sentido fazer reforma agrária, tinha que fazer no século 19. Um terceiro ponto é a criação de uma enorme faixa da população de não cidadãos, que eram os escravos, gente que não contava nem nas estatísticas. Além disso, também herdamos uma concentração centralizada e autoritária do Estado, uma pequena elite tutela todo o resto, essa grande geleia geral social instável e perigosa. Outra coisa importante: Joaquim Nabuco observou com precisão que a escravidão corrompeu toda a nossa forma de ser, fez com que o brasileiro desprezasse o trabalho, porque quem trabalhava era o escravo. E a escravidão também corrompeu o modo como nós olhamos para nós mesmos, como se um brasileiro pudesse se sentir superior diante dos outros. Também acredito que a herança monárquica no Brasil é historicamente mais forte que a republicana, ou seja, o brasileiro, mesmo em ambiente republicano, mantém uma certa perspectiva monárquica do poder.

Como essa perspectiva se manifesta?

É o brasileiro que não participa de sindicatos, comunidades de bairro, partidos políticos, reuniões de pais na escola... Não participa nem da assembleia do condomínio onde mora, mas espera muito do Estado! É essa perspectiva de esperar tudo de um pai, um soberano que irá nos prover tudo. Isso se dá porque, no passado, o brasileiro não foi chamado nem autorizado a participar da construção das instituições e da própria identidade nacional. É comum estar em uma mesa de bar e ouvir um brasileiro dizer que em Brasília todo mundo é corrupto, que tem que fechar o congresso e chamar um ditador, ou um imperador. Ainda tem muito monarquista no Brasil. Mas, em suas relações privadas, a mesma pessoa fura fila, joga lixo na rua, anda pelo acostamento e corrompe o agente público sempre que é da sua conveniência. E isso não se dá apenas com o brasileiro pobre, com o analfabeto funcional, também age assim o empresário que corrompe e sonega impostos.

Nesse contexto, como interpretar as manifestações de junho passado?

Como não estávamos habituados a exercer democracia plena, nós alimentamos algumas ilusões, até porque o Brasil também tem uma outra característica: o messianismo, o salvador que entrará no poder e resolverá tudo. Isso tem relação com o sebastianismo português. É interessante que, na redemocratização, em 1984, esse sebastianismo aflora muito rapidamente na ideia de que bastariam alguns anos de democracia para que todos os nossos problemas se resolvessem. E principalmente que a gente poderia contar com alguns salvadores da pátria, como o Collor, líder dos descamisados; o FHC, homem que doma a inflação; o Lula, pai dos pobres; a Dilma, mãe do Bolsa Família... Acho que hoje o Brasil está em uma espécie de estado de choque cívico. Por que está demorando tanto para resolvermos nossos problemas? Por que a corrupção ainda continua? Por que a violência é cada vez maior? Onde estão as fórmulas mágicas? Por que as fórmulas nas quais apostamos não deram tão certo? Tem uma certa frustração no ar.

É comparável à frustração de um adolescente chegando à idade adulta?

Sim, é a ideia de que somos um gigante adormecido que vai acordar e virar um país de primeiro mundo. Acho que está ocorrendo algo muito saudável, o Brasil está pela primeira vez se olhando no espelho e perguntando “quem sou eu?”, “quem vai resolver meus problemas?”. Numa sociedade republicana e democrática, não é um rei ou o ditador quem resolve as coisas, é a sociedade organizada. O nosso desafio é assumir a República que a gente proclamou em 1984 (ele se refere às Diretas Já) e referendou por plebiscito em 1993 (os eleitores escolheram o modelo de república presidencialista). Acho que as manifestações são um sinal de vitalidade da nossa democracia, mas levantam algumas questões complicadas: democracia não se faz no grito, e sim nas práticas diárias nas escolas, nas empresas, nas ONGs, nos partidos políticos, nos sindicatos, nas urnas... Esse aspecto ainda não foi percebido pelo brasileiro, que vai bonitão pra rua como cara-pintada.

Mas há uma frustração real.

Há também uma parte dos jovens que está frustrada, que é abusada diariamente com ônibus ruim, metrô que atrasa, polícia que dá geral nele quase todo dia... Na hora de fazer manifestação, esse jovem pensa “agora, aqui é uma Suíça”, aí quebra tudo, arrebenta, não quer nem saber. Mas democracia não se faz com quebra-quebra. Como o regime militar reprimiu demais, perseguiu inimigos, torturou e matou, hoje estamos muito tolerantes com a violência, com o banditismo e com o quebra-quebra. Não se pode deixar pessoas quebrarem o patrimônio público ou privado com o falso argumento de que estão se manifestando democraticamente. As manifestações estão confrontando as instituições brasileiras democráticas e a capacidade do Estado de, ao mesmo tempo em que assegura o direito à liberdade de expressão, impedir que um grupo minoritário imponha sua vontade pela violência.

E como o senhor viu os protestos em relação à Copa do Mundo?

É uma coisa saudável para a democracia, estamos confrontando nossos próprios demônios. Esse negócio de querer ter hospitais, escola e serviços público padrão Fifa... Se somos capazes de fazer estádios tão bons, coisa que aparentemente não somos (risos), por que não também serviços públicos de qualidade? É uma questão de prioridade nacional, de onde colocar nossos escassos recursos. Essa é uma discussão que o futebol está levantando. Agora, também está muito claro que a construção do Brasil dos nossos sonhos vai demorar mais do que a gente imagina, porque envolve mudanças de natureza cultural. Eu diria que jamais você vai ter em Brasília um Estado muito mais ou muito menos corrupto e ineficiente do que a média da sociedade brasileira. O que está em Brasília é a média do que somos. Se quisermos ter um Estado melhor do que temos, teremos que qualificar a sociedade pela educação e cultura. Meus netos e bisnetos não verão isso. Quem sabe daqui a 100 ou 200 anos seja assim.

Depois de uma carreira como jornalista, o senhor pediu demissão para se dedicar à literatura num país em que poucos escritores vivem de seus livros. Como foi esse momento de mudança?

Durante mais de 30 anos, fui repórter de redação de jornal e revista. Ali aprendi o que faço hoje. Às vezes me dizem que mudei de profissão, que hoje sou escritor ou historiador. Não, sou um jornalista. Só mudei de formato. Antes, fazia jornal ou revista. Hoje, faço livro-reportagem. Tudo ocorreu por coincidência. Em 1997, eu trabalhava na Veja, e havia um projeto de uma série sobre história do Brasil para ser distribuída para assinantes. Fiquei encarregado de coordenar uma equipe de pesquisa, mas o projeto foi cancelado. Resolvi continuar e radicalizar. Aí nasceu o livro 1808, em 2007. Acho que o jornalista deve combinar profundidade de pesquisa com linguagem simples, didática. Mas também é preciso ter senso de oportunidade. E era a véspera dos 200 anos da chegada da corte. Mesmo assim, fui surpreendido pelo interesse do Brasil em história, nunca sonhei que meu livro iria se tornar um best-seller. Aí, fui confrontado com a minha criatura, o autor não fica imune ao destino do livro que escreve. Tive que pedir demissão, coisa que não imaginava. Meu chefe disse: “Você está doido” (risos).

Nas palestras e encontros literários de que participa, o senhor tem a chance de conhecer as profundezas do Brasil. Como tem visto este país além dos grandes centros urbanos?

É um Brasil multifacetado, com realidades regionais que continuam muito distantes entre si, que está passando por um processo de transformação muito grande e, principalmente, um processo de reflexão muito intenso. É uma semente que está germinando em silêncio, e é muito boa. É uma maratona rodar esse país de proporções continentais, mas me sinto animado, mesmo percebendo que temos dificuldades enormes a enfrentar. No Piauí, por exemplo, percebi que há uma grande parcela da população que vive do Bolsa Família, e lá a Dilma tem uma popularidade enorme, maior do que no Sul e Sudeste do Brasil. Aí você vê duas faces da mesma moeda: se, por um lado, o Bolsa Família é um esforço muito bom de corrigir um passivo histórico de distribuição de renda, por outro é quase uma reprodução à esquerda de um clientelismo que os coronéis nordestinos faziam no passado, criando viveiros eleitorais.

O senhor também passou, em 2012, pela experiência de morar nos EUA, quando pesquisava para o livro 1989. Como foi esse mergulho na sociedade americana?


Minha esposa foi estudar inglês, e eu pude acessar a Biblioteca Oliveira Lima, que fica em Washington. É um acervo de 40 mil documentos, que tem muita coisa sobre a república e o império. E também é interessante observar os próprios norte-americanos. Você vê que é uma sociedade muito organizada e tem uma identidade muito forte em relação ao passado, seus fundadores, os símbolos nacionais, como eles carregam e vestem aquela bandeira. Aqui, como tivemos muitas rupturas, nossa referência do passado continua muito difusa, quem nós somos, de onde viemos. O brasileiro não se identifica com o país no dia a dia, só em momentos de catarse, como na morte do Ayrton Senna, no Carnaval, na Copa do Mundo... No cotidiano, é até uma certa vergonha usar uma bandeira do Brasil no carro. É um problema de identidade, de saber quem sou eu, quais os símbolos e as referências mitológicas que servem para mim, com as quais me identifico.

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