A grande mentira está adoecendo os homens de bem
que romanticamente achavam que o Brasil poderia se modernizar. Os safados
atuais acreditam que o país não tem condições de suportar a “delicadeza” da
democracia. E como o socialismo é impossível — eles remotamente suspeitam —
partiram para o mais descarado populismo, que funciona num país de pobres
analfabetos e famintos. E eles são mantidos “in vitro” para futuras eleições. E
populismo dura muito. Destruirão a Venezuela e Argentina com a aprovação da
população de enganados. É muito longa a “jornada dos imbecis até o
entendimento”.
Por Arnaldo Jabor (O Globo)
A vitória da Dilma começou há dez anos, quando o
PSDB preferiu não se defender dos ataques de Lula e do PT. Nunca entenderei
como um partido que, no governo, acabou com a inflação, criou leis
modernizantes, reformas fundamentais, fechou-se, se “arregou, se encagaçou”
diante das acusações mais infundadas, por preguiça e medo. Aí o PT deitou e
rolou. E conseguiu transformar os social-democratas em “reacionários de
direita”, pecha que os jovens imbecis e intelectuais de hoje engoliram.
Ou seja, o melhor projeto para o país foi
desmoralizado como “neoliberal”, de “direita”.
Os intelectuais que legitimaram o Lula/Dilma nos
últimos 12 anos repetem os diagnósticos óbvios sobre o mundo capitalista mas,
na hora de traçar um programa para o Brasil, temos o “silêncio dos inocentes”.
Rejeitam o capitalismo, mas não têm nada para botar no lugar. Assim, em vez de
construir, avacalham. Estamos no início de um grave desastre. E esses
“revolucionários” de galinheiro não se preocupam com o detalhe de dizer “como”
fazer suas mudanças no país.
Dizem que querem mudar a realidade brasileira mas
odeiam vê-la, como se a realidade fosse “reacionária”. Isso me faz lembrar
(para um breve refresco cômico) a frase de Woody Allen: “A ‘realidade’ é
enigmática, mas ainda é o único lugar onde se pode comer um bom bife”.
No Brasil, a palavra “esquerda” continua a ser o
ópio dos “pequenos burgueses” (para usar um termo tão caro a eles). Pressupõe
uma especialidade que ninguém mais sabe qual é, mas que “fortalece”, enobrece
qualquer discurso. O termo é esquivo, encobre erros pavorosos e até justifica
massacres.
Nas rasas autocríticas que fazem, falam em
“aventureirismo”, “vacilações”, “sectarismo” e outros vícios ideológicos; mas o
que os define são conceitos como narcisismo, paranoia, onipotência, voracidade,
ignorância. É impossível repensar uma “esquerda” mantendo velhas ideias como:
democracia burguesa, fins justificam os meios, superioridade moral sobre os
“outros”, luta de classes clássica. Uma “nova esquerda” teria de acabar com a
fé e a esperança. Isso dói, eu sei; mas, contar com essas duas antigas virtudes
não cabe mais neste mundo de bosta de hoje.
As grandes soluções impossíveis amarram as
possíveis. Temos de encerrar as macrossoluções e aceitar as “micro”. O discurso
épico tem de ser substituído por um discurso realista e até pessimista. O
pensamento da “esquerda metafísica” tem de dar lugar a uma reflexão mais
testada, mais sociológica, mais óbvia, mais cotidiana.
Não quero bancar o profeta, mas qualquer um que
tenha conhecido a turminha que está no poder hoje, nos idos de 1963, poderia
adivinhar o que estava para vir. E olhem que nos meus vinte anos era impossível
não ser “de esquerda”. Havia o espírito do tempo da Guerra Fria, uma onda de
esperança misturada com falta de experiência. Nós queríamos ser como os homens
maravilhosos que conquistaram Cuba, os longos cabelos louros de Camilo
Cienfuegos, o charuto do Guevara, a “pachanga” dançada na chuva linda do dia em
que entraram em Havana, exaustos, barbados, com fuzis na mão e embriagados de
vitória.
A genialidade de Marx me fascinava. Um companheiro
me disse uma vez: “Marx estudou economia, História e filosofia e, um dia,
sentou na mesa e escreveu um programa para reorganizar a humanidade.” Era a
invencível beleza da Razão, o poder das ideias “justas”, que me estimulava a
largar qualquer profissão “burguesa”. Meu avô dizia: “Cuidado, Arnaldinho, os
comunistas se acham ‘médiuns’, parece tenda espirita...”
Eu não liguei e fui para os “aparelhos”, as
reuniões de “base” e, para meu desalento, me decepcionei.
Em vez do charme infinito dos heróis cubanos,
comecei a ver o erro, plantado em duas raízes: ou uma patética tentativa de
organização da sociedade que nunca se explicitava ou, de outro lado, um delírio
radical utópico. Eu e outros “artistas” morávamos numa espécie de “terceira
via” revolucionária e começamos a achar caretas ou malucos os nossos camaradas.
Nas reuniões e assembleias, surgia sempre a presença rombuda da burrice. A
burrice tem sido muito subestimada nas análises históricas. No entanto, ela é
presença obrigatória, o convidado de honra: a burrice sólida, assentada em
certezas. As discussões intermináveis acabavam diante do enigma: o que fazer? E
ninguém sabia. Eu nunca vi gente tão incompetente como os “comunistas”. São
militantes cheios de fé como evangélicos, mas não sabem fazer porra nenhuma. E
até hoje são fiéis a essa ignorância. Trata-se de um cinismo indestrutível em
nome de um emaranhado de dogmas que eles chamam de “causas populares”. E Lula
montou nessa gente, e essa gente no Lula.
A grande mentira está adoecendo os homens de bem
que romanticamente achavam que o Brasil poderia se modernizar. Os safados
atuais acreditam que o país não tem condições de suportar a “delicadeza” da
democracia. E como o socialismo é impossível — eles remotamente suspeitam —
partiram para o mais descarado populismo, que funciona num país de pobres
analfabetos e famintos. E eles são mantidos “in vitro” para futuras eleições. E
populismo dura muito. Destruirão a Venezuela e Argentina com a aprovação da
população de enganados. É muito longa a “jornada dos imbecis até o
entendimento”.
Na situação atual, é um insulto vermos o regresso
do Brasil a um passado pré-impeachment do Collor. Reaparecem todos os vícios
que pareciam suprimidos pela consciência da sociedade. E para além das
racionalizações, do “wishful thinking” dos derrotados (tucanos “fortalecidos”
etc..), a oposição vai ter de lutar muito para impedir o desastre institucional
que pode ser irreversível.
Nas últimas eleições não houve uma disputa tipo Fla
x Flu. É muito mais grave. Estamos descobrindo que temos poucos instrumentos
para modernizar o pais — tudo parece ter uma vocação para a marcha à ré em
direção ao atraso. O óbvio está berrando à nossa frente, e os donos do poder
fecham os olhos.
Esta crise não é só política; é
psiquiátrica.
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