(..) Difícil imaginar que isso vá dar certo. Não vai. Estamos chegando ao limite da capacidade individual de resistência dos empreendedores privados do país. E o ambiente hoje está longe, muito longe, de lhes ser propício. Na verdade, no fundo de sua alma, nossas autoridades, em praticamente todos os níveis, não parecem gostar muito deles.
Por SERGIO
BARCELLOS ( O Globo) - Via Rodrigo Constantino
Um
dia, conversando com Lord Melbourne, a rainha Victoria pediu-lhe que definisse
o que fosse governar. Com uma clareza de ofender a vista, ele respondeu em uma
frase: “Governar, Majestade, é defender a sanidade da moeda e a santidade dos
contratos.” Ponto.
Por
aqui, porém, isso parece cada vez mais difícil. Não só porque a moeda ameaça
deixar de ser sã — depois de anos de dolorosa travessia do deserto iniciada em
1994 com o Plano Real — como também porque contrato agora tem prazo de
carência, igual a remédio, e só vale até o próximo “marco regulatório” do
próximo governo.
Neste
ambiente, registrar uma empresa, colocar dinheiro do próprio bolso, contratar
empréstimos para crescer, correr riscos e gerar mais empregos vira aventura no
simples instante em que é emitido o famoso cartão do CNPJ (Cadastro Nacional da
Pessoa Jurídica). E não importa qual o ramo de negócio. Em todos — sem exceção
—, nosso audaz empreendedor vai dar de cara com quase 39% de impostos, o que o
obrigará a ter que trabalhar de janeiro a maio de cada ano, todos os anos, para
pagar o pedágio do Leviatã, do Hobbes.
Bem,
ainda sobram cerca de sete meses para se virar e manter vivo o empreendimento.
Coitado, não sabe o que o espera: de saída, o espera um pandemônio fiscal e
trabalhista que muda completamente de sentido a cada 30 dias, ou menos, na
medida da torrente de atos e instruções normativas que regulam a matéria, nos
planos federal, estadual e municipal. A fome do Leviatã não tem limites.
E
junto com o CNPJ vem a sopa de letrinhas: PIS, Cofins, FGTS, INSS, Dirfs, IPI,
ICMS, ISS, IPTU, DUT, IPVA, IRPJ etc, embaralhada com alíquotas que podem
variar da noite para o dia, mais os ditames da jurisprudência dos tribunais
superiores, mais uma coorte de taxas criadas do nada, mais a parafernália dos
carimbos, assinaturas, a nova invenção, entre outras, do reconhecimento de
firma “por autenticidade” (uma contradição em termos), mais um desfile de
invenções diabólicas do tipo. E, rapidamente, as pessoas e o tempo despendidos
para controlar tudo isso superam largamente aquele dedicado aos objetivos
sociais do empreendimento.
Tudo
se passa como se o inferno estivesse em paz, pois todos os demônios hoje
resolveram se reunir em torno da empresa e de seu dono.
Mas
o pior mesmo é ser empresário rural. De grãos, então, é coisa para louco
declarado. Além de ter que arar, adubar, plantar, defender-se das pragas, rezar
para chover (ou não chover), colher, armazenar, transportar, vender e embarcar,
ainda há, quem diria, outros problemas julgados “menores” pelos sucessivos
governos do país: não há onde estocar as colheitas, não há ferrovia, não há
navegação fluvial e, quem diria, não há porto que consiga escoar a produção a
tempo e a hora. Mas há, claro, todo o resto aí em cima, que o Leviatã não
brinca em serviço e está sempre disposto a inventar um novo carcará para bicar
o fígado do Prometeu da vez. Todos os dias, 365 dias por ano. Bicada a bicada,
pedaço a pedaço, até a hemorragia final.
Difícil
imaginar que isso vá dar certo. Não vai. Estamos chegando ao limite da
capacidade individual de resistência dos empreendedores privados do país. E o
ambiente hoje está longe, muito longe, de lhes ser propício. Na verdade, no
fundo de sua alma, nossas autoridades, em praticamente todos os níveis, não
parecem gostar muito deles.
Fingem
que gostam, mas desconfiam. Desconfiam de tudo. Desconfiam de suas crenças,
desconfiam de sua criatividade, fazem ouvidos de mercador aos empregos que eles
proporcionam, desconfiam até de sua afluência econômica quando se revelam
capazes de superar o imponderável das circunstâncias que os cercam.
Ao
fim e ao cabo, de desconfiança em desconfiança, chegamos até ao paroxismo de
imaginar que a maior empresa do país — aquela que a própria União governa —
possa continuar a sobreviver ao esquema maldito de perder mais dinheiro na
exata medida do aumento de suas vendas. Ou seja, quanto mais vende, mais perde.
Se fazem isso com a Petrobras, imagine-se o que não fariam com um empresário
privado qualquer.
Até
que isso tudo mude — se é que um dia muda — CNPJ no Brasil 2014 é coisa para
doido. E, quando todos os doidos tiverem desistido, quando o mar de
dificuldades e de problemas tiver se imposto, então, todos seremos funcionários
públicos.
Mas não nos iludamos: nesse
momento será para esse novo (e único) estamento da sociedade que o Leviatã
voltará os seus olhos. E a sua fome. Já aconteceu em outros países e em outros
períodos da História. E todos nós, mais o país em torno, nos transformaremos em
uma horda de funcionários públicos. Inexoravelmente, e cada vez mais pobres.
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