terça-feira, 30 de outubro de 2012

Os mensaleiros venceram

Haddad fez com a pobre educação brasileira o que o PT sempre faz no poder: marketing do oprimido. Defendeu livros didáticos com erros de português, tentou bajular os gays com cartilhas estúpidas, fez demagogia progressista com o sistema de cotas. Enquanto os estudantes se esfolavam no Enem, ele estava nos comícios de Dilma para presidente.

Por Guilherme Fiuza (O Globo)


O Brasil continua assistindo ao julgamento do mensalão como um filme de época. O STF está prestes a dar as sentenças, e o público aplaude a virada dessa página infeliz da nossa história, quando a pátria dormia tão distraída etc. O problema é que a pátria continua dormindo profundamente.

José Dirceu, o grande vilão, o homem que vai em cana condenado pelo juiz negro, nesse duelo que faz os brasileiros babarem de orgulho, não é um personagem do passado. Está, hoje mesmo, regendo o PT no segundo turno das eleições municipais. Ainda é a principal cabeça do partido que governa o país.

E o eleitorado não está nem aí. A campanha de Fernando Haddad em São Paulo é quase uma brincadeira com o Brasil. Um candidato inventado por essa cúpula petista que só pensa naquilo (se pendurar no poder estatal) consegue uma liderança esmagadora no segundo turno. O projeto parasitário de Dirceu, que tem Lula como padrinho e Dilma como afilhada, pelo visto não vai sofrer um arranhão com a condenação no Supremo. O eleitor não liga o nome à pessoa.

Fernando Haddad foi um sujeito inexpressivo de boa aparência colocado no Ministério da Educação para fazer política. Sua candidatura é a menina dos olhos de Lula, mais um plano esperto dessa turma que descobriu que pode viver de palanque sem trabalhar.

O fenômeno Haddad conseguiu bagunçar a vida dos vestibulandos por três anos seguidos, com erros primários no Enem, típicos de inépcia e vagabundagem. Se fosse no Japão, o então ministro teria se declarado humilhado e se retirado da vida pública. No Brasil, vira um "quadro" forte da política.

Haddad fez com a pobre educação brasileira o que o PT sempre faz no poder: marketing do oprimido. Defendeu livros didáticos com erros de português, tentou bajular os gays com cartilhas estúpidas, fez demagogia progressista com o sistema de cotas. Enquanto os estudantes se esfolavam no Enem, ele estava nos comícios de Dilma para presidente.

Tudo conforme a lógica mensaleira da agremiação que governa o Brasil há dez anos: usar os mandatos para garimpar votos e arrecadar fundos (para pagar os Dudas lá fora, o que o Supremo já disse que está OK).

O ex-ministro Haddad é filho dos mentores do mensalão, assim como os ministros do STF Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Nunca se viu espetáculo tão patético na esfera superior do Estado: dois supostos juízes usando crachá partidário e obedecendo às ordens do principal réu. Contando, ninguém acredita.

Esse sistema desinibido de prostituição da democracia vai de vento em popa, porque a pátria-mãe tão distraída resolveu acreditar que a vida melhorou porque Lula é (era) pobre e porque Dilma é mulher. O Brasil não faz mais questão de nada: nem a entrega do "planejamento" da infraestrutura à quadrilha Delta-Cachoeira comoveu os brasileiros.

O prefeito Eduardo Paes disse que o Brasil está jogando fora a chance de se organizar, e o ministro dos Esportes ficou zangado. A turma do maquinário detesta quando alguém lembra que eles não trabalham. O ministro Aldo Rebelo é companheiro de partido do seu antecessor, o inesquecível Orlando Silva, rei das ONGs. Nas mãos do PCdoB, o Ministério dos Esportes estava aproveitando a Copa do Mundo no Brasil para montar seu pé-de-meia companheiro - o que é absolutamente normal, dentro da ética mensaleira.

Aí surgem as manchetes intrometidas e Dilma tem que encenar a faxina, a contragosto, cobrindo de elogios o companheiro decapitado e entregando a boca para um colega de partido. Assim é em todo o primeiro escalão do governo, mas eles ficam muito chateados se alguém lembra que esse esquema malandro não serve para organizar o país para uma Copa, para uma Olimpíada ou para um futuro decente.

Enquanto a pátria continuar dormindo e sonhando com o heroísmo de Joaquim Barbosa, a república mensaleira seguirá em frente. Ninguém deu a menor bola para o escândalo denunciado pelo ex-ministro do STF Sepúlveda Pertence.

Dilma Rousseff aproveitou o espetáculo no Supremo e cortou a cabeça dos dois conselheiros "desobedientes" da Comissão de Ética da Presidência. Marília Muricy e Fábio Coutinho ousaram reprovar a conduta dos ministros companheiros Carlos Lupi e Fernando Pimentel. A presidente teve que demitir Lupi, que transformara o Ministério do Trabalho numa ação entre amigos do PDT - partido que o demitido continua comandando, em apoio ao governo popular.

Mas Pimentel, com suas milionárias consultorias fantasmas, vendidas graças aos seus belos olhos de amigo da presidente, continua vivendo de favor no Ministério do Desenvolvimento.

Um dia já houve a expectativa de que Marcos Valério, uma vez apanhado, abriria o bico. Hoje o bico de Valério não vale mais um centavo. O golpe já foi revelado, e a real academia mensaleira continua comandando a política brasileira. Testada e aprovada pelo povo.

A religião do momento

A outra ameaça é eleger sacerdotes que não creem nos poderes do Estado. Gritem comigo: eles são hereges! Eles são demônios! Eles são neoliberais! Querem privatizar a Entidade Nacional do Reino Estatal! Precisamos atirá-los nos calabouços das derrotas eleitorais, irmãos!


 Leandro Narloch, Folha de SP

CARO IRMÃO, você que está vivendo uma situação desesperadora, que se sente esgotado, estressado, sem saída, eis aqui um convite. Junte-se a nós, dê uma chance ao poder divino da política, venha descobrir que o Estado pode salvar a sua vida.

O jovem cheio de esperança, a senhora solitária que veio até aqui nos conhecer, tenham certeza que há um candidato olhando para vocês, um vereador proibindo alguma coisa na cidade, uma presidente com poder e sabedoria guiando o país.

É verdade, irmãos, que os últimos tempos não têm favorecido a crença no Estado. Há séculos pregamos que a educação, a saúde e o transporte público vão funcionar, e o que vemos são enfermeiras de postos de saúde injetando café com leite na veia de senhoras idosas.

Apesar disso, irmãos, o Estado nos pede que ignoremos esses problemas e perseveremos na fé -a fé de que um dia algum político nos conduzirá a um reino de paz e justiça social.

Irmãos, a mensagem mais importante a vocês é sobre dois graves riscos que nós corremos nas eleições deste domingo. O primeiro deles é que religiões influenciem a disputa para a chefia de nossos alvíssimos palácios. Isso é um absurdo, irmãos!

Religiões se baseiam em mundos imaginários, irmãos! Em ideias obscuras! Nós, ao contrário, lidamos com o mundo real! Com princípios científicos! Por exemplo, quando almejamos postos de saúde com a mesma qualidade dos melhores hospitais particulares, ou bancos estatais livres da influência de partidos: é a realidade, senhores! Nossos sonhos são perfeitamente realistas, irmãos!

A outra ameaça é eleger sacerdotes que não creem nos poderes do Estado. Gritem comigo: eles são hereges! Eles são demônios! Eles são neoliberais! Querem privatizar a Entidade Nacional do Reino Estatal! Precisamos atirá-los nos calabouços das derrotas eleitorais, irmãos!

Calma, senhora, não precisa jogar cheques e notas em nossos pés. Os sacerdotes fiscais já trataram de reter parte de seu salário e embutir nos preços do mercado a taxa de manutenção de nossas obras divinas. O valor está passando um pouco do dízimo -beira 40% de sua renda- mas acredite, minha senhora: todo ele é destinado ao bom caminho, à construção do paraíso escandinavo, ao poder infinito e sagrado do Estado.

Leandro Narloch jornalista e autor de "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil" e coautor de "Guia Politicamente Incorreto da América Latina".

sábado, 27 de outubro de 2012

Carros chegam a custar três vezes mais no Brasil

A margem de lucro no Brasil é uma das menores no mundo, não é a margem que pesa. É a questão do custo. Há uma carga tributária muito forte, que para a importação é de 35%. O Imposto sobre Produtos Industrializados que inicialmente era 25%, passou para 55%. Existe ainda o PIS/Cofins, que chega a 11%, e são todos impostos sobre impostos.

Henning Dornbusch Presidente da BMW no Brasil

Na onda de montadoras que anunciaram investimentos para produzir automóveis localmente, atentas aos incentivos fiscais previstos pelo novo regime automotivo brasileiro, a BMW decidiu colocar seus euros em Santa Catarina.

Na segunda-feira passada, a multinacional alemã confirmou a instalação de uma fábrica em Araquari, município vizinho ao polo metalmecânico de Joinville (SC), investimento inicial de 200 milhões de euros (cerca de R$ 525 milhões) e geração de mil empregos diretos.

Os primeiros modelos brasileiros da BMW X1 sairão da linha de produção ao final de 2014. O projeto é a principal estratégia da empresa para ampliar as vendas no Brasil de 12 mil para 30 mil carros ao ano em médio prazo.

Nesta entrevista, o presidente da BMW no Brasil, Henning Dornbusch, fala mais sobre o investimento e as perspectivas da companhia no Brasil. O executivo estará em Porto Alegre na próxima quarta-feira, no 21º Congresso de Marketing, promovido pela seção gaúcha da Associação dos Dirigentes de Vendas e Marketing do Brasil (ADVB). Confira os principais trechos de entrevista concedida ontem à tarde a ZH.

Zero Hora – O Brasil é visto pelas montadoras de automóveis premium como uma boa alternativa de mercado?

Henning Dornbusch – O Brasil tem uma demanda reprimida muito grande, existe um movimento de distribuição de renda para os próximos anos. Também há mobilidade urbana individual ou coletiva muito baixa no país, comparando com os países desenvolvidos. Além disso, o número de habitantes por carro no Brasil ainda é muito elevado. E essa razão é maior ainda no segmento premium, onde a BMW se insere. Estou falando de 1% ou 1,5% da participação dessa categoria sobre o total no mercado. Se você analisa a Europa e os Estados Unidos, isso chega a 25%.

ZH – Qual a avaliação da BMW sobre o regime automotivo anunciado pelo governo brasileiro?

Dornbusch – O que está acontecendo agora é que o governo está começando a alinhar os interesses de desenvolvimento do país à qualidade das indústrias já existentes e aos novos entrantes. A China, a Índia e a Rússia estão fazendo isso. O Brasil demorou muito tempo para desenvolver uma política automotiva. O que nós tínhamos antes não era uma política propriamente automotiva, mas regras bem antiquadas.

ZH – A matriz da montadora vê motivação protecionista no aumento de tributação de carros com baixo conteúdo nacional?

Dornbusch – A questão é que o Brasil está começando a definir estratégia de longo prazo visando a proteger o emprego e a indústria local. É algo que já está ocorrendo em diversos países que têm maior potencial de consumo nos próximos anos. Não vou dizer que é protecionista, mas é uma nova política de desenvolvimento econômico baseado em regras que visam a incentivar a disseminação de novas tecnologias.

ZH – O preço dos carros no Brasil é considerado, inclusive por publicações internacionais – como a Forbes –, extremamente alto. O que pesa no valor? As margens da indústria são maiores aqui?

Dornbusch – A margem de lucro no Brasil é uma das menores no mundo, não é a margem que pesa. É a questão do custo. Há uma carga tributária muito forte, que para a importação é de 35%. O Imposto sobre Produtos Industrializados que inicialmente era 25%, passou para 55%. Existe ainda o PIS/Cofins, que chega a 11%, e são todos impostos sobre impostos. Para cobrir todos os custos de distribuição, alguns carros chegam a custar três vezes mais no Brasil do que no Exterior.

ZH – Incentivos fiscais ainda são a principal arma dos Estados para atrair grandes investimentos, como o anunciado pela BMW para Araquari (SC)?

Dornbusch – O que vai acontecer cada vez mais é que os incentivos fiscais vão se tornando um instrumento menor na decisão de investimento de uma empresa. Até porque os incentivos fiscais podem ser alterados antes do tempo. Nós não consideramos os incentivos fiscais como ponto principal na decisão de uma fábrica. Nossa ideia é que o projeto tem de ser viável sem renúncia fiscal, por que ela pode ser volátil.

ZH – O que pesou a favor de Santa Catarina para a decisão do investimento?

Dornbusch – Foi relevante a questão portuária. Há diversos portos em funcionamento no Estado e outros que podem ser adaptados ao tipo de produção da BMW. Também levamos em conta a mão de obra qualificada e o fato de não existir um setor automotivo constante em Santa Catarina, o que motiva a BMW a ser pioneira nesse sentido, ajudar o Estado a desenvolver um polo automotivo e fornecedores que conheçam melhor os nossos processos, sem vícios de outras montadoras.

ZH – A BMW chegou a levar em conta a hipótese de se instalar no Rio Grande do Sul?

Dornbusch – Vários Estados foram considerados como investimento. O Rio Grande do Sul foi um deles. A questão é que todos eles tiveram projetos interessantes, mas não vem ao caso dizer por que um ou outro não foi escolhido.

ZH – Poderá haver compra de autopeças e serviços de fornecedores do Rio Grande do Sul?

Dornbusch – Sim. Mas nosso departamento de compras internacionais está mapeando os fornecedores agora, junto com a matriz na Alemanha, e prefiro não antecipar informações.

 Fonte: ZERO HORA

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Nós, os inúteis

Os homens deixaram de ser úteis quando deixaram de ser homens --na atitude, nos comportamentos, nos "hobbies", até no vestuário e nas "tendências" (horrenda palavra)

João Pereira Coutinho, Folha de SP

 Posso oferecer uma sugestão de leitura? "The Revolt of Man" (a revolta do homem), de Walter Besant (1836-1901). O leitor não conhece? Acredito. Sir Walter foi um respeitável cavalheiro vitoriano que a história da literatura inglesa acabou por esquecer.

Injusto. O livro, uma novela distópica brilhantemente escrita, é um exemplo de misoginia que diverte as almas saudáveis.

Enredo: na Inglaterra do futuro, o mundo é governado pelas mulheres. Elas controlam tudo: política, economia, cultura, trabalho. E os homens? Os homens, pobre raça, são reduzidos a bestas de carga e escravos sexuais das triunfantes donzelas.

Fatalmente, essa vaginocracia começa a sair dos eixos: a sociedade a empobrecer, o caos a reinar, as instituições a colapsar --e as mulheres, em desespero de causa, apelam aos homens para salvar a honra do convento.

São eles que regressam das catacumbas para repor a ordem e a felicidade universal.

Besant viveu no século 19. Mas o que diria ele do nosso século 21?

Olho em volta. E concluo que só tenho amigas solteiras ou divorciadas. Casamento é artigo raro e breve por estas bandas.

A situação, confesso, seria a ideal para um rapaz disponível como eu, com hábitos de higiene adquiridos e uma sanidade mental, digamos, satisfatória. O problema é que os homens deixaram de ser ideais para elas.

As solteiras encontraram no trabalho a independência econômica que as mães e avós não tinham. Os homens, quando muito, servem para necessidades ocasionais que esta Folha, um jornal de família, me impede de mencionar.

As divorciadas já passaram pela experiência e não gostaram. Depois da paixão e do idílio dos primeiros anos (ou meses), descobriram com espanto que o príncipe, afinal, sempre foi um sapo. A barriga do infeliz cresceu. A comunicação desapareceu. E o sexo passou a ser, nas imortais palavras de Nelson Rodrigues, "uma mijada". Conclusão?

Depois de o amor virar farsa, elas pegaram nos respectivos girinos e jogaram-nos no charco da inutilidade.

Homem só atrapalha. E nem para filhos serve mais: ser mãe é como fazer inscrição na academia. Basta escolher o banco certo e a questão, nove meses depois, está resolvida.

Um livro recente, aliás, enfrenta o problema. Foi escrito por Hanna Rosin, intitula-se apocalipticamente "The End of Men: And the Rise of Women" (o fim do homem: e a ascensão da mulher) e, segundo resenha da "Economist", tem números que podem interessar aos brasileiros: 1/3 das mulheres do país já ganham mais do que os seus companheiros. Existe até um grupo de apoio para esses homens infelizes, sintomaticamente intitulado "Homens de Lágrimas". Será verdade, leitor? Não minta, não minta.

O Brasil não é caso único. Na Coreia do Sul, o excesso de mulheres na carreira diplomática obrigou o governo a instituir as fatídicas cotas para homens.

Moral da história? Os homens começam a ser bichos em vias de extinção. Sem a importância econômica, reprodutiva ou até social de outros tempos, os pobres coitados ainda tiveram uma suprema humilhação com a crise financeira de 2008: conta a mesma "Economist" que 3/4 dos empregos destruídos pela hecatombe --nas finanças, nas fábricas, na construção civil-- eram tradicionalmente masculinos.

Pelo contrário: a nova economia emergente, baseada cada vez mais em qualidades como "comunicação" e "adaptação", está pronta para o triunfo da sensibilidade feminina.

Se Edward Besant viajasse do século 19 para o século 21, imagino que a sua distopia seria outra: sim, o mundo estaria nas mãos das mulheres. Mas, dessa vez, os homens já não existiriam para o salvar.

Estariam demasiado ocupados, de bermudão e cerveja, com os amigos no botequim.

Porque essa talvez seja a verdade mais dolorosa de todas, que a "Economist" refere sem desenvolver o tema competentemente: não foi a economia ou a libertação sexual feminina que fez dos homens seres inúteis.

Os homens deixaram de ser úteis quando deixaram de ser homens --na atitude, nos comportamentos, nos "hobbies", até no vestuário e nas "tendências" (horrenda palavra).

Nenhuma mulher gosta de ter em casa dois adolescentes retardados: o filho e o pai.



Caminhando com Ferreira Gullar

"Quando ser de esquerda dava cadeia, ninguém era. Agora que dá prêmio, todo mundo é"


Por João Pereira Coutinho


Viajo para Londres. Na mala, algumas revistas para ler nas duas horas de voo. Tiro a primeira. Folheio as páginas iniciais. Encontro Ferreira Gullar em entrevista à "Veja". O dia está ganho.

Sobre o poeta, não vale a pena dizer o óbvio: depois da morte do lusitano Mário Cesariny (1923-2006), Ferreira Gullar é o único poeta de língua portuguesa que merece a honraria do Nobel.
Embora, atendendo às anedotas recentes da academia sueca (Elfriede Jelinek, Herta Müller etc.), talvez seja mais correto dizer que é o Nobel que precisa do prestígio de Gullar.

Mas a entrevista é sobretudo uma lição de política só possível em alguém que, permanecendo à esquerda no que a esquerda tem de melhor (uma insubordinação instintiva perante abusos ou privilégios injustificáveis), aprendeu e refletiu com a experiência histórica.

"Quando ser de esquerda dava cadeia, ninguém era. Agora que dá prêmio, todo mundo é", diz o poeta. Eis o "espírito do tempo", feito de oportunismo e farsa ideológica.

Ferreira Gullar não alinha em farsas. O capitalismo tem páginas abomináveis de miséria e exploração, sobretudo nas incipientes sociedades industriais do século 19? Sem dúvida --e ler Charles Dickens é, nesse quesito, mais relevante do que ler Marx, que nunca pôs os pés numa fábrica e tinha Engels para sustentá-lo.

Mas o capitalismo, apesar de tudo, "é forte porque é instintivo", diz o poeta. Em apenas uma frase, Gullar resume o que Adam Smith escreveu em dois volumes, 250 anos atrás.

Existe nos seres humanos um desejo natural para "melhorarem a sua condição", escrevia o filósofo escocês. E essa melhoria material só se consegue quando o açougueiro, o cervejeiro e o padeiro perseguem o seu próprio interesse, negociando os seus produtos e procurando aumentar os seus lucros.

Fato: sem freios éticos ou legais, o capitalismo é destrutivo e autodestrutivo. Mas quando existem esses freios, e nenhum liberal clássico prescinde deles (Adam Smith, antes de escrever "A Riqueza das Nações", escreveu primeiro a sua "Teoria dos Sentimentos Morais", base ética de qualquer sociedade civilizada), não há outra forma, historicamente comprovada, de gerar riqueza.

Claro que, para um marxista puro e duro, o capitalista nunca gera riqueza; ele explora quem trabalha e vive do suor alheio, de preferência fumando o seu charuto e brandindo o chicote. Raymond Aron, o mais incisivo crítico do marxismo que conheço, tem páginas notáveis onde desmonta essa dicotomia caricatural entre "capital" e "trabalho".

Ferreira Gullar prefere uma metáfora: "O empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas". E acrescenta, para os lentos de raciocínio: "A visão de que só um lado produz riqueza e o outro só explora é radical, sectária, primária".

Finalmente, as lições da história: Ferreira Gullar não se limita a relembrar os crimes do "socialismo real", hoje uma evidência para qualquer pessoa com dois neurônios em funcionamento.

Ele deixa uma pergunta devastadora: quantos dos defensores de Cuba estariam dispostos a viver lá? Sim, a viver enjaulados em uma ilha de onde é difícil sair, onde publicar um livro implica uma permissão governamental --e onde a igualdade na miséria é a única igualdade que existe e resiste?

É um bom princípio de responsabilidade política: só defendermos regimes sob os quais estamos dispostos a viver. Todo resto é pose pornográfica.

Infelizmente, não sobra espaço para as meditações estéticas propriamente ditas. Mas Ferreira Gullar, relembrando a morte de um filho, deixa esta definição (meta) poética primorosa: "Os mortos veem o mundo pelos olhos dos vivos".

Nem mais: escrever é continuar essa revelação interminável do ainda não-dito, do ainda não-experimentado, como se o poeta fosse o elo presente de uma corrente interminável.

Ou, como o próprio Gullar escreveu nos seus velhinhos "Poemas Portugueses", que praticamente aprendi de cor: "Caminhos não há/ Mas os pés na grama/ os inventarão/ Aqui se inicia/ uma viagem clara/ para a encantação".

Caminhar com Ferreira Gullar tem sido, hoje e sempre, uma lição e um privilégio.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Para Lula e os seus áulicos, a democracia é um valor burguês, uma figura de retórica


Mas palavra de honra não me parece que seja coisa para se levar em conta no lulismo. Para Lula e os seus áulicos, a democracia é um valor burguês, uma figura de retórica a ser utilizada segundo a conveniência do momento

Por Marcelo Madureira - Casseta e Planeta (Folha de SP)

O Brasil é um país complicado. Por um lado, a democracia dá um salto de qualidade, impulsionada pela ação do Supremo Tribunal Federal no julgamento do mensalão. Do outro lado, assistimos nestas eleições de 2012, mais uma vez, articulações de forças intestinas na direção do atraso, do patrimonialismo autoritário e obscurantista.

A cidade de São Paulo é a principal arena deste MMA político brasileiro. Queira ou não queira, o segundo turno paulistano, como sempre, alcança dimensão nacional. São Paulo não é só a nossa maior metrópole, mas também, por sua multiplicidade, uma síntese do Brasil. Além da gestão da cidade, o que esta em jogo são dois projetos políticos distintos e antípodas.

Coerente com o perfil autoritário do ex-presidente Lula, o candidato Fernando Haddad, enfiado goela a dentro do PT, dá continuidade ao projeto lulista.

Esse lulismo traz dentro de si tudo aquilo que a civilização brasileira quer transformar em página virada. O projeto caudilhesco de Lula usa o aparelhamento do Estado, a demagogia populista e não contempla uma transformação virtuosa da sociedade brasileira.

Fernando Haddad é mais uma peça desse projeto. Projeto que tem como único arcabouço “ideológico” o poder pelo poder, a qualquer preço, e com as alianças com aquilo de pior que existe na política brasileira. E a lista é grande: são Malufes, Sarneys, Barbalhos, Calheiros, Collors e Valdemares Costa Neto. Está nos autos.

O mensalão foi um atentado à democracia brasileira. Uma traição explícita à Constituição, pedra fundamental do Estado de Direito que, no ato de posse, o presidente jura manter, proteger e cumprir.

Mas palavra de honra não me parece que seja coisa para se levar em conta no lulismo. Para Lula e os seus áulicos, a democracia é um valor burguês, uma figura de retórica a ser utilizada segundo a conveniência do momento.

O povo de São Paulo, guardião intransigente da Constituição brasileira, honrando o movimento constitucionalista de 1932, tem o dever de derrotar esse projeto político.

José Serra pode não ser um candidato simpático. Muito pelo contrário. O ex-governador de São Paulo Mário Covas também não era. Mas, como o saudoso Covas, Serra já provou mais de uma vez retidão e competência na gestão da coisa pública, e isso é o mais importante. O eleito, afinal, não vai ganhar um programa de humor, mas uma prefeitura para administrar.

A única lembrança que Haddad deixou do seu período à frente do Ministério da Educação, por outro lado, foi a sua desastrosa gestão do Enem, com fraudes e erros de organização que prejudicaram milhões de alunos em um momento crucial das suas vidas.

Desnecessário dizer que, se votasse em São Paulo, votaria no Serra. Subtraindo seus defeitos e somando as suas virtudes, José Serra é a melhor alternativa.

Inclusive acredito que o compromisso que o candidato tucano propõe aos paulistanos não será interrompido por uma eventual candidatura à presidência, como tanto se comenta. Serra sabe que o seu sonho com o Planalto já passou e que a oposição brasileira, em nível nacional, pede novos protagonistas.

Caramba! Nunca escrevi tão sério! Deve ser a influência do Serra…

Piada de salão (Ferreira Gullar)


Pois bem, como o tiro saiu pela culatra e o partido da ética na política consagrou-se como um exemplo de corrupção, Lula e sua turma já começaram a inventar uma versão que, se não os limpará de todo, pelo menos vai lhes permitir continuar mentindo com arrogância. O truque é velho, mas é o único que resta em situações semelhantes: posar de vítima.
 Por Ferreira Gullar, Folha de SP

 Quando o escândalo do mensalão abalou a vida política do país e, particularmente, o governo Lula e seu partido, alguns dos petistas mais ingênuos choraram em plena Câmara dos Deputados, desapontados com o que era, para eles, uma traição. Lula, assustado, declarou que havia sido traído, mas logo acertou, com seus comparsas, um modo de safar-se do desastre.

Escolheram o pobre do Delúbio Soares para assumir sozinho a culpa da falcatrua. Para convencê-lo, creio eu, asseguraram-lhe que nada lhe aconteceria, porque o Supremo estava nas mãos deles. Delúbio acreditou nisso a tal ponto que chegou a dizer, na ocasião, que o mensalão em breve se tornaria piada de salão.

Certo disso, assumiu a responsabilidade por toda a tramoia, que envolveu muitos milhões de reais na compra de deputados dos partidos que constituíam a base parlamentar do governo.

Embora fosse ele apenas um tesoureiro, afirmou que sozinho articulara os empréstimos fajutos, numa operação que envolvia do Banco do Brasil (Visanet), o Banco Rural e o Banco de Minas Gerais, e sem nada dizer a ninguém: não disse a Lula, com que privava nos churrascos dominicais, não disse a Genoino, presidente do PT, nem a José Dirceu, o ministro político do governo.

Era ele, como se vê, um tesoureiro e tanto, como jamais houve igual. Claro, tudo mentira, mas estava convencido da impunidade. A esta altura, condenado pelo STF, deve maldizer a esperteza de seus comparsas. Mas os comparsas, por sua vez, devem amaldiçoar o único que, pelo menos até agora, escapou ileso do desastre --o Lula.

Pois bem, como o tiro saiu pela culatra e o partido da ética na política consagrou-se como um exemplo de corrupção, Lula e sua turma já começaram a inventar uma versão que, se não os limpará de todo, pelo menos vai lhes permitir continuar mentindo com arrogância. O truque é velho, mas é o único que resta em situações semelhantes: posar de vítima.

E se o cara se faz de vítima, tem o direito de se indignar, já que foi injustiçado. Por isso mesmo, vimos José Genoino vir a público denunciar a punição que sofreu, muito embora tenha sido condenado por nove dos dez ministros do STF, quase por unanimidade.

A única hipótese seria, neste caso, que se trata de um complô dos ministros contra os petistas. Mas mesmo essa não se sustenta, uma vez que dos dez membros do Supremo, oito foram nomeados por Lula e Dilma.

Reação como a de Genoino era de se esperar, mesmo porque, alguns dias antes, a direção do PT publicara aquele lamentável manifesto em que afirmava ser o processo do mensalão um golpe semelhante aos que derrubaram Getúlio Vargas e João Goulart. Também a nota posterior à condenação de José Dirceu repete a mesma versão, segundo a qual os mensaleiros estão sendo condenados porque lutam por um Brasil mais justo. O STF, como se sabe, é contra isso.

Não por acaso, Lula --que reside num apartamento duplex de cobertura e veste ternos Armani-- voltou a usar o mesmo vocabulário dos velhos tempos: "A burguesia não pode voltar ao poder". Sim, não pode, porque agora quem nos governa é a classe operária, aquela que já chegou ao paraíso.

Não tenho nenhum prazer em assistir a esse espetáculo degradante, quando políticos de prestígio popular, que durante algum tempo encarnaram a defesa da democracia e da justiça social em nosso país, são condenados por graves atentados à ética e aos interesses da nação. As condenações ocorreram porque não havia como o STF furtar-se às evidências: dinheiro público foi entregue ao PT, mediante empréstimos fictícios, que tornaram possível a compra de deputados para votarem com o governo. Tudo conforme a ética petista, antiburguesa.

Mas não tenhamos ilusões. Apesar de todo esse escândalo, apesar das condenações pela mais alta corte de Justiça, o PT cresceu nas últimas eleições. Tem agora mais prefeituras do que antes e talvez ganhe a de São Paulo. Nisso certamente influiu sua capacidade de mascarar a verdade, mas não só. Com a mesma falta de escrúpulos, tendo o poder nas mãos, manipula igualmente as carências dos mais necessitados e dos ressentidos.

Não vai ser fácil acharmos o rumo certo.